Apresentamos aqui mais um conto de Douglas Alfini Jr. escrito especialmente para o Cultura de Fato. A história traz, no centro, um personagem muito conhecido do mundo contemporâneo: o cético que precisa se haver com as experiências que desafiam sua concepção materialista da existência.
Mudanças significativas acontecem em nossa vida o tempo todo. Não há como controlá-las. Rotina, convivência, pessoas indo e vindo, mudanças de opinião e, principalmente, de pensamento… a certeza de ontem pode evaporar-se hoje na mais efêmera nuvem de poeira, dando lugar a uma nova e absoluta verdade que se instaura, magnânima, até ser deposta como que por um ditador. Outrora intocável e impecável em sua posição, bate em retirada, derrotada, rumo ao seu esconderijo distante e frágil, à espera da morte certa. A verdade, a verdade mesmo, é que a verdade absoluta é uma grande mentira…
E como se enganam aqueles que acreditam que essa dança das cadeiras no baile das certezas se encerra com o avançar dos anos… sou prova do contrário! Logo eu, sempre tão cético e firme em minhas posições, principalmente em matéria de religião, agora na velhice me encontro confrontado pela vida e por quem a tem nas mãos, e vejo algumas de minhas convicções, antes defendidas com unhas e dentes, simplesmente se desmanchando como castelos de areia.
Satchmo
Era por volta das dezoito horas quando me sentei no balcão do bar. Logo notei que o trio que se apresentava fixamente todos os dias, nos bons tempos, fora substituído por uma triste trilha sonora de elevador reproduzida pelo sistema de som da casa, e o palco outrora cheio de vida jazia agora esquecido num canto escuro, transformado em depósito de cadeiras sem uso e caixas de bebida. Só quem houvesse frequentado o famoso “bar dos médicos”, como era conhecido em seu auge, nos anos oitenta, poderia experienciar a tristeza nostálgica que senti ao vê-lo assim. Não que tivesse se transformado numa espelunca, longe disso: segue limpo e com certo charme, como exige o padrão dos estabelecimentos no bairro nobre em que está localizado; mas era notória a perda do encanto que um dia tornara renomado o Satchmo Bar.
Pedi um whisky e uma tônica, como fiz ao longo dos vinte anos em que o frequentei, me lembrando do tempo em que nem era preciso fazê-lo, uma vez que o barman já o aprontava assim que me via entrar; antes mesmo de me sentar, lá estava o copo sobre um guardanapo, à minha espera. Hoje, já não conheço o rapaz que ocupa a função, e nem sei se ele tem alguma ligação com o velho Morris, antigo proprietário e encarregado, ele mesmo, do atendimento aos clientes… provavelmente já devia ter falecido, como tantos outros que dividiram comigo o gosto pelo bom jazz que aquecia o lugar.
Bem, ao menos Fúlvio está vivo — e atrasado, como sempre! —, meu velho amigo que, se não o mais próximo dos tempos de plantão no PS, era agora meu último elo com o passado.
A porta se abriu, fazendo entrar os últimos raios de sol daquela tarde, juntamente com meu amigo. Dei uma boa olhada em Fúlvio; temos a mesma idade, mas acredito que a vida tenha sido um pouco menos cruel comigo. As oitenta primaveras de Fúlvio o haviam castigado com dois infartos do miocárdio, aos quais eu mesmo tive o desprazer de atender.
— Pazzetto! Que prazer em revê-lo! — disse, animado, abrindo os braços e me fazendo levantar para abraçá-lo. — Perdoe-me pelo atraso, havia me esquecido como o trânsito pode ser infernal a essa hora…
— Não se desculpe, ambos sabemos que os atrasos são sua marca registrada!
Fúlvio começou a rir.
— Já não mais como antes! Acabaram-se as desculpas, depois que você me obrigou a fechar o consultório…
— Sabe que foi para o seu bem. Você precisa de descanso.
— Mas sinto falta do dia a dia na clínica — Fúlvio havia sido um grande oncologista por mais de quarenta anos. — A aposentadoria é uma merda… a Glória me deixa maluco com aquela preocupação excessiva depois da última ocorrência.
Quis adverti-lo em sua observação sobre a esposa…
— Antes eu ainda tivesse a Leonor para se preocupar comigo.
… mas eu entendia o típico bom humor de Fúlvio; apenas sorri e perguntei como estavam a esposa e os filhos. Ele me disse que todos estavam bem e perguntou também sobre minha família, e assim gastamos mais de meia hora de papo. Fúlvio pediu um refrigerante diet e o bebeu com cara de que o fizesse apenas para evitar uma bronca minha. Como se eu não soubesse que ele jamais abandonaria o gosto pelos destilados…
Iniciamos, então, uma deliciosa e ao mesmo tempo melancólica sessão de lembranças de tudo o que vivemos no Satchmo. Rimos como devem rir dois velhos amigos relembrando a juventude e as maluquices a ela inerentes. Passamos pelos trotes, pelas bebedeiras homéricas, pelas tantas mulheres, até que meu safenado amigo desenterrou, da sepultura fria onde moram as lembranças mais estranhas, uma história que minha boa memória havia deixado de lado. Foi a partir daí, dessa inocente aide-mémoire retirada do arquivo mental de Fúlvio, que se desencadeou uma série de eventos que mudariam o rumo de minha velhice e suas certezas.
— Lembra daquela vez, Pazzetto, em que o Gastão e o Helinho quase destruíram o bar depois de uma discussão? Deu até polícia!
Era impressionante como, por algum motivo, minha mente havia suprimido um fato tão marcante; não tive como conter a empolgação ao rememorá-lo. Junto de Fúlvio, revivi imediatamente cada soco, cada cadeira que voou sobre nossas cabeças, e consegui até mesmo dividir com precisão os amigos que tomaram partido de um e de outro, arrancando gargalhadas de Fúlvio ao lembrar que estávamos, ele e eu, em lados diferentes naquela contenda: ele no time de Gastão, eu ao lado de Helinho. Só restava agora um importante detalhe a ser ressuscitado… qual havia sido o estopim da briga? Por que dois companheiros de copo, amantes de jazz e colegas de profissão, acabaram quase se matando num fim de tarde após o expediente?
— Não se lembra? Realmente não se lembra? Ora, é o melhor de tudo! — disse Fúlvio, enquanto enxugava as lágrimas festivas com um lenço.
Eu realmente não me lembrava, mas ao ouvir meu amigo relatando o acontecido, me vi como que transportado para o dia em questão, e as palavras saídas da boca de Fúlvio se transformaram imediatamente em imagens reais.
“Doutor Fritz!”
Alberto Gastão, um neurocirurgião já renomado, entrava no Satchmo Bar. Estava pálido como uma estátua de cera. Pediu um copo de whisky puro, sem gelo, bebendo-o de uma só vez. Suas mãos trêmulas pareciam vivas sobre o balcão. Algum amigo próximo, ao notar seu estado, lhe perguntou o que se passava, e o jovem médico, sem titubear, desembestou a contar o motivo de seu nervosismo, chamando a atenção de todos ao redor e fazendo com que se achegassem cada vez mais, conforme percebiam o tom alto e assustado de sua voz.
— Foi há pouco, era uma cirurgia complexa, um tumor em uma região muito delicada do cérebro. A paciente era uma senhora de mais de oitenta anos, negra… soube depois que foi empregada doméstica a vida toda, semianalfabeta, a coitada… tudo ia aparentemente bem até que tive uma pequena tontura, uma queda de pressão, não sei. Quando me recompus segundos depois, mal sabia o que estava fazendo. Fiquei completamente perdido, com o bisturi em mãos. A enfermeira chamava meu nome como se tentasse me acordar, e eu já estava quase mandando que ela calasse a boca, quando ouvi em alto e bom som: “Bleib ruhig, du weißt was zu tun ist”. Levei um susto e perguntei quem havia dito aquilo. Como sabem, fiz minha residência em Zurique e entendo o suficiente da língua, mas ninguém mais naquela sala falava uma só palavra de alemão. Foi quando vi aquela mulher sedada, com o crânio aberto e os olhos fechados, mover seus lábios e língua para me indicar, com uma suave e tranquila voz masculina, cada passo seguinte a ser dado naquela cirurgia, inclusive utilizando termos técnicos bastante complexos que eu só havia escutado na universidade. Terminei a cirurgia — que foi um sucesso — em estado de choque. Perguntei aos meus assistentes se algum deles havia escutado qualquer coisa de anormal naquela sala, e logo pude perceber, pela serenidade em seus rostos, que não tinham presenciado nada incomum. Dona Quitéria segue em observação pós-cirúrgica, mas passa bem. Estou ansioso por acompanhar sua recuperação e poder falar com ela…
Não fosse o ritmo constante do jazz ao fundo, não se ouviria o mais mínimo som no Satchmo, naqueles segundos que se seguiram à história contada por Gastão. Denis, outro médico do nosso grupo, resolveu então quebrar o gelo, contando uma pequena experiência sobrenatural vivida também por ele numa sala de cirurgia, quando um misterioso enfermeiro desconhecido teria adentrado o local para trazer uma providencial injeção a um paciente que acabara de sofrer um choque anafilático. De repente, o salão do bar havia se transformado quase que em um programa sensacionalista de televisão, com vários relatos de acontecimentos sobrenaturais sendo contados em tom sério e sendo respeitados pela maioria dos presentes. Enfermeiras fantasmas, pacientes que acordavam do coma falando árabe, curas improváveis e experiências de além-morte deram o tom da conversa. Gastão já estava até um pouco mais calmo, quando uma estrondosa gargalhada ecoou pelo bar justamente quando a banda fazia uma pausa.
— Que patético grupo de idiotas são vocês! Nunca escutei tantas bobagens vindas de homens que se dizem doutores. Tenham vergonha na cara, meus caros. Medicina é coisa séria, e vocês falam como curandeiros, pajés de uma tribo do Xingú… era só o que me faltava: médicos supersticiosos!
Helinho, já pra lá de embriagado após sua quinta ou sexta dose, explodiu num rompante de indignação, ao findar das histórias até então pacientemente acompanhadas por todos. Agora me lembro que, assim como para ele, também me era difícil engolir muito do que fora dito ali, ainda que não duvidasse das palavras de Gastão, a quem tinha na mais alta conta de sujeito sério que era. De qualquer forma, a palavra “curandeiro” pareceu ter ofendido Gastão de maneira especial, e ele, que naquele dia já não estava no auge de seu equilíbrio, levantou-se, em tom desafiador.
— A quem está chamando de curandeiro, Hélio?
— Vejam só, o Zé Arigó do Satchmo é um valente! Você, você mesmo, Alberto! Curandeiro de beira de rio, dado a crendices e devaneios. Deveria procurar um psiquiatra…
— E você, os Alcoólicos Anônimos, bêbado de merda! Não sei como ainda o deixam operar, no estado em que se encontra!
Era conhecido, no meio médico, o relacionamento um tanto exagerado de Helinho com a bebida, mas também havia exagerado Gastão ao sugerir a cassação de sua licença, visto que o Dr. Hélio Pinheiro era um nome importante da cardiologia, àquela altura. Isso eu sabia muito bem por ser seu colega de especialidade. É verdade, também, que ele sempre fora egocêntrico e provocador; some-se isso ao porre e pronto: ninguém mais reconhecia as virtudes de ninguém e tudo havia se transformado em uma grande baixaria.
— Pinguço, vagabundo! — gritava Gastão.
— Doutor Fritz! — respondia Hélio do outro lado.
O empurra-empurra começou até se transformar em pancadaria, e eu, que naquela altura me identificava muito mais com o time dos ébrios do que com qualquer outro, tomei o partido de Helinho, mesmo tendo sempre conservado muita admiração por Gastão.
Fatos devidamente revividos, Fúlvio e eu já nos despedíamos na calçada, quando uma pergunta me veio à mente.
— Fúlvio… você acredita?
— Em quê?
— Na história do Gastão.
— Ora, e por que ele mentiria? Você o conheceu tão bem quanto eu. Gastão não era de conversa fiada.
— Tem razão… mas e você? Já viveu alguma experiência dessas, em tantos anos dentro de hospitais? Digo, algo sobrenatural, entende?
Fúlvio me olhou profundamente, com um sorriso nos lábios.
— Sim, uma única vez, e foi inesquecível. Qualquer dia te conto, hoje não temos mais tempo.
Miles Davis
Os dias se passaram, mas a sombra daquela história me atormentou incessantemente. Passei a me lembrar de Gastão, e de como aquele relato fantástico não condizia com sua austeridade. Se ainda fosse vivo, eu o procuraria; inventaria uma desculpa qualquer e o encontraria para, como quem não quer nada, perguntar se ainda pensava no ocorrido… enfim, tarde demais. Dos vinte e dois médicos que formavam a turma do Satchmo, talvez apenas cinco ainda estivessem vivos: além de Fúlvio e eu, restavam o Paulo e o Laporta, que moravam respectivamente nos Estados Unidos e na Espanha, e o Helinho. Este, após a fatídica confusão, deixou o grupo do bar, julgando-nos todos uns tolos, mesmo aqueles que, como eu, haviam ficado momentaneamente ao seu lado. Soube, depois, que se mudara para o sul, onde acumulou fortuna e veio a se aposentar da cardiologia. Uma figura e tanto, o Helinho…
Deitado em minha cama e de olhos no teto, antes de adormecer, eu sempre pensava nele e em toda a sua incredulidade convicta. Será que continuava assim firme em sua decisão de crer apenas no visível, no palpável? Será que nada lhe teria acontecido que mudasse suas certezas?
Mais alguns tantos dias se foram e novamente estava eu em minha cama, pronto para dormir, quando, alcançando o controle remoto para desligar a televisão, uma última notícia me despertou imediatamente:
“Encontra-se sequestrado, em São Paulo, o cardiologista e empresário Hélio Pinheiro, que estava na cidade a negócios. Ainda não foram divulgadas maiores informações sobre as possíveis exigências dos sequestradores.”
Peguei o telefone na mesma hora para ligar para Fúlvio, mas antes que pudesse fazê-lo, o telefone tocou. Imaginei que seria ele, que tivesse visto a mesma notícia que eu, mas não — do outro lado da linha, quem falava era Glória, sua esposa. Fúlvio acabara de sofrer o terceiro infarto e, desta vez, nada podia ser feito.
Por dias estive em um estado de profunda tristeza, tanto pelo amigo perdido quanto pela situação de Hélio. Já não conseguia dormir, não conseguia comer… que estranha série de acontecimentos era aquela? Eu procurava uma resposta lógica, mas as coincidências quase nunca se explicam.
Passei a acompanhar as notícias sobre o sequestro em todos os meios de comunicação, mas quase nada era revelado. Dizia-se apenas que um grupo provavelmente estrangeiro, de sequestradores profissionais, era o responsável, e que a polícia mantinha tudo no mais absoluto sigilo para não atrapalhar a operação de busca. Foi-se o luto por Fúlvio, e uma necessidade sufocante de rever a Hélio e poder falar-lhe mais uma vez tomou conta de mim, dali em diante. Quando, no décimo segundo dia de cativeiro, a notícia de sua libertação foi comunicada em rede nacional, chorei de alegria e alívio, confesso.
— Agora, preciso encontrá-lo! — disse a mim mesmo.
Levei algumas semanas acionando meus contatos no meio clínico para conseguir o telefone de Hélio, que, desde muito tempo, eu já não tinha. Para minha surpresa, quando finalmente pude telefoná-lo, o próprio parecia estar me esperando. Atendeu-me de maneira serena, disse que estava bem e que seria um prazer ver-me novamente.
— No Satchmo? Quarta à tarde está ótimo. Até lá.
Que tranquilidade, para um sujeito que há vinte dias estava sob o poder de uma quadrilha perigosa. Mal pude dormir na noite anterior; não entendia bem o porquê, mas sentia que aquela conversa seria de extrema importância para lançar luz sobre os dilemas que me perturbavam naqueles dias. Não sabia bem o que perguntar, nem qual Hélio encontraria, tantos anos depois… minha última lembrança era a de um homem explosivo de 32 ou 33 anos, mas como estaria ele agora, para lá dos 80 e tendo passado por um trauma como aquele?
Entrei no Satchmo na hora marcada e Hélio já estava lá. Tomava seu whisky e comia amendoins. Cabeça erguida, sozinho, e boa aparência, no geral, apesar das olheiras. Me cumprimentou com um firme aperto de mão, sem abraços ou emoções, mas havia lá um sorriso.
Falamos sobre trivialidades, passando também por algumas novidades na cardiologia. Hélio quis saber se eu ainda trabalhava na área, e se mostrou atualizado, apesar de aposentado já há um bom tempo. Lidava agora com cavalos: tinha um haras em Porto Alegre, que era administrado pelo único filho. Senti qualquer frieza de sua parte ao mencioná-lo; algo parecia não estar bem na relação dos dois, e preferi mudar de assunto.
— Em meu último encontro com o Fúlvio, nós estávamos aqui mesmo, recordando aquela sua briga com o Gastão, lembra? Que tremenda confusão vocês armaram…
Terminei a frase sorrindo, esperando um comentário bem humorado de Helinho, que, se não era um exemplo de simpatia, ao menos parecia à vontade e interessado em estar ali comigo. Mas aquela lembrança o fez mudar totalmente de atitude.
— Gastão era um idiota, um estúpido. Me arrependo por não ter conseguido acertá-lo como merecia.
Me espantei com tamanha reação de ódio e até tentei amenizar.
— Vocês eram relativamente jovens, desentendimentos acontecem com frequência nessa fase… ainda mais depois de uns drinks…
— Um boçal! E isso nada tem a ver com a bebida. Posso secar três garrafas de scotch na sua frente e, ainda assim, você não vai me ver inventando absurdos sobre duendes, fadas, Deus e milagres. Sujeitinho simplório… envergonha a medicina, um tipo desses. Mas me diz uma coisa, que fim ele levou?
— Câncer. Já faz sete ou oito anos…
— Morto… já desconfiava. Bem, agora ele pode ter sua experiência sobrenatural verdadeira! — e gargalhou. — Imagine a decepção do sujeito ao descobrir que sua “vida eterna” se resume a um túmulo coberto de terra… é uma pena que a consciência se vá antes disso, pois seria hilário!
— Vejo que continua o mesmo, não é, Helinho? Um cético convicto!
— E você não? Se bem me lembro, esteve do meu lado na briga… só não espere um agradecimento por isso, foi por sua conta e risco respondeu secamente Hélio, que já estava em seu quarto copo.
Por apreensivo que estava ao chegar no bar, apenas agora me apercebia de que haviam limpado o palco, e qual não foi minha surpresa ao ver um novo trio preparando os instrumentos para começar a tocar. Pouco tempo depois, uma bateria, um contrabaixo e um trompete faziam com que nos calássemos para apreciar.
— Miles runs the voodoo down… — disse Hélio, logo aos primeiros acordes, acertando o nome da música que continuamos a ouvir, atentos.
— Eu não sei.
— Não sabe o quê?
— Se continuo do seu lado, na briga.
— Então te pegaram também? Quem foi? Chico Xavier? Ou viu Nossa Senhora numa mesa de cirurgia? Dentro de um coração inflamado, talvez! Não, já sei: foi uma dessas igrejas evangélicas! Notei mesmo que seu whisky está só fazendo figuração, aí…
— Não, nada disso. Na verdade, nunca tive uma única experiência sobrenatural. Nenhuma voz, nenhum chamado… nada. Começo a pensar que o problema sou eu. Tanta gente passa por algo que transforma sua vida e…
— Bobagem! — a essa altura, Hélio já falava mais alto e mais mole — Na nossa idade, Pazzetto, sobrenatural seria uma ereção, ou um dia sem dor nas costas!
A piada me fez rir — e concordar.
— Mas e você, Hélio? Passou pela vida sem um assombro sequer? Nada de inexplicável? Você acabou de sair de um sequestro, homem! Não acha que pode ter sido poupado pela vida porque ainda tem algo maior te esperando?
— Pela vida? Por “vida” você quer dizer “Deus”, não é?
— Acho que sim…
— Vou te contar uma coisa sobre Deus, Pazzetto, meu velho…
Hélio, com uma expressão mudada, encarava o fundo do copo já vazio outra vez. Depois, olhou para a banda, com os olhos desfocados, como quem estivesse muito longe dali. E, então, continuou:
— Já me encontrei com ele, e te digo mais: foi o próprio filho da mãe quem me sequestrou.
O sequestro
Daí em diante, o Dr. Hélio Pinheiro resolveu-se a contar-me em detalhes o ocorrido, e hoje posso afirmar que, de maneira surpreendente, a história sobrenatural mais inacreditável que já ouvi saiu da boca do maior cético ateu que conheci ao longo dos meus oitenta anos de vida.
“Já teve aquela sensação de estar sendo observado o tempo todo, Pazzetto? Pois bem, passei um ou dois meses antes do ocorrido convivendo com essa sensação incômoda. Andando na rua, dirigindo, até mesmo sozinho, dentro de casa, ela sempre estava lá. Não tomei qualquer providência em relação a isso, afinal não havia muito a ser feito, a não ser estar alerta… e armado. Tratei de esquecer; tinha essa reunião em São Paulo e logo pensei que isso ficaria pra trás, mas não ficou. Já por aqui, a coisa se intensificou ainda mais e eu comecei a ficar paranoico, pois até ligações misteriosas passei a receber no celular. Por fim, aluguei um carro para os dias em que estaria por aqui, uma vez que odeio depender desses motoristas chatos que falam o tempo todo. Quando estava a caminho da reunião, me ligaram mais uma vez desse número restrito, e atendi disposto a ameaçar o vagabundo que eu, em minha paranoia, acreditava estar me seguindo; mas antes que pudesse intimá-lo a revelar-se, fui interrompido por uma batida firme na traseira do carro. O celular caiu da minha mão e eu bati a cabeça no volante. A porcaria do airbag não funcionou, mas naquele momento até achei algo bom, pois consegui sacar a arma que levava no bolso interno do blazer e desci, mesmo sangrando, pronto para enfrentar meu perseguidor. Mas, novamente, não houve tempo — uma forte pancada me acertou na parte de trás da cabeça e tudo se apagou.
Quando acordei, não sei quanto tempo depois, estava sentado em uma cadeira, numa sala totalmente escura. Acho que me drogaram, pois mesmo sem estar amarrado, eu não conseguia me mover. Por dias gritei, imóvel, pedindo ajuda, mas nem um único som era ouvido. Nem passos, nem vozes, nada. O silêncio era perturbador. Outro fato interessante é que ninguém me alimentava, mas eu não sentia a menor fome, nem sede. Na verdade, também não sentia dor ou qualquer outra coisa. Meus gritos por socorro foram se transformando em gritos de raiva e, já disposto a morrer, disparei a gastar meu francês mais primitivo na tentativa de ao menos despertar a ira de quem pudesse me ouvir. Tudo em vão. Finalmente, acabei por desistir de qualquer tentativa, e lá se foram mais alguns dias, acredito eu, em absoluto silêncio. Foi então que, no que hoje sei ter se tratado do décimo segundo dia de cativeiro, já sem conseguir reunir qualquer força para esboçar uma reação, apenas balbuciei: “Meu Deus”. Antes que completasse com o que, confesso, seria um pedido de ajuda, abriu-se uma porta, que eu até então não sabia que existia, revelando um forte fio de luz que se apagou logo em seguida.
— Me chamou, Hélio? — disse aquela voz indescritível.
— Me tire daqui, seja você quem for!
— Você está livre. Não existem amarras, levante-se e vá embora.
Mas eu não conseguia. Por mais que tentasse, permanecia imóvel.
— Quem é você?
— Sou aquele a quem você chamou.
Então me calei por um instante, antes de perguntar:
— O que quer de mim? O que preciso fazer para poder ir embora?
— Apenas ter fé. Que possa crer em mim verdadeiramente por um segundo que seja e estará livre.
Mas ainda assim eu não podia.
— Mostre-me sua face, só assim poderei fazer o que me pede — implorei.
Foi aí que tudo desmoronou. Meu cativeiro desapareceu junto da escuridão. Tudo se iluminou, e eu ainda estava na mesma cadeira, mas agora em meio a um grande campo de grama verde. O sol brilhava, renovador, o vento tocava meu rosto… ao fundo, um riacho corria, límpido, e tudo era estonteante. Sou um homem viajado, mas nunca havia visto nada parecido em parte alguma do mundo. Aos poucos, fui sentindo minhas pernas ganhando vida novamente e o sangue a correr, intenso, em minha veias. Neste exato instante, me vi de volta ao cativeiro e, em pé, naquela sala escura, tateei as paredes até encontrar a porta. Eu estava livre.”
— Então… você acreditou? Acreditou em Deus?
— Acreditei em algo, meu amigo
— Mas… e aquela voz? Simplesmente desapareceu?
— Quando abri a porta, estava em um bosque, um pedaço de mata fechada. Enquanto tentava sair, me enroscando entre a vegetação, apenas pensei em pedir novamente a mesma ajuda de antes, e o simples desejo parece tê-la despertado novamente.
— “Apenas creia e eu te mostrarei todas as coisas”, foi o que a voz me disse pela última vez. Tudo o que me lembro, daí para diante, é de ter acordado no hospital, e a história pronta que me apresentaram dizia que eu havia sido vítima de um grupo de terroristas estrangeiros que teriam feito exigências ao meu filho, por telefone, para que me libertassem, mas que após minha fuga, simplesmente haveriam desaparecido… a polícia nunca encontrou o local do meu cativeiro e eu também não faço ideia de onde estive. Segundo me disseram, fui reconhecido enquanto andava desorientado na rua, muito perto de onde o carro havia sido abandonado.
Olhei fixamente para Hélio, enquanto ele contemplava mais uma vez, com olhos distantes, o gelo no fundo do copo. Eu estava como que em transe por conta daquela história, e as palavras simplesmente desapareceram de minha mente. Ouvimos o jazz em silêncio por mais algum tempo, até que Hélio levantou-se para ir embora. Já recuperado do impacto inicial, segurei-o mais uma vez.
— Me diga, Hélio. O que acha que foi tudo isso? Qual é o efeito de tamanho milagre?
Hélio sorriu.
— Efeito? Nenhum… eu sou um cético, Pazzetto. Acreditei no que precisava para retomar minha vida, e agora levo-a como sempre levei. Com certeza existe outra explicação para tudo o que aconteceu comigo, mas a verdade é que não me importo em saber todas as coisas. Se quer um milagre em que acreditar, olhe…
E apontou para a outra ponta do balcão, antes de sair. Lá estava o velho Morris, agora centenário dono do Satchmo Bar, apoiando um copo de whisky com tônica sobre um guardanapo…
Por Douglas Alfini Jr.
O autor tem como principais influências os clássicos do romance e da literatura fantástica, bem como o cinema
western. É graduado em história. A obra Crônicas do Invisível (2021) é seu livro de estreia.
Nota da editoria:
A imagem da capa faz da coletânea “irish live”, de John O’Brien.