A revolução dos espertos

Obra: "Don't be stupid" (2019), por Michael Slutsker

O Brasil tem um enorme passado pela frente.
Millôr Fernandes (1923 – 2012)

* Este artigo foi originalmente publicado pelo website Mídia Sem Máscara, em 4 de dezembro de 2007



Afinal, a quem pertence o mundo? Nos anos 70, quando a rua da badalação em São Paulo era Augusta, surgiu uma historieta que nunca se soube se tem fundamento ou é pura invenção. Os mais “maduros” a conhecem e, resumidamente, é o seguinte: um boyzinho “esperto” enfia, rapidamente, o seu fusca na vaga em que um carrão estava prestes a estacionar. O dono do carrão reclama, dizendo que, evidentemente, já estava manobrando para estacionar ali. O garotão responde insolente: “o mundo é dos espertos” e segue para o barzinho. Então, o outro simplesmente dá uma ré e amassa todo o fusquinha com uma sonora pancada. Para o garotão perplexo ele diz pela janela antes de ir embora: “está enganado, meu filho, o mundo é dos ricos”.

Mais ou menos na mesma época, o nosso saudoso Nelson Rodrigues vergastava em colunas diárias as ridículas hipocrisias da esquerda brasileira, criando toda uma tipologia: o padre de passeata; a freira de mini-saia; Palhares, o canalha; a grã-fina de narinas de cadáver; a estagiária de calcanhar sujo; a psicóloga da PUC e por aí vai, com um certo destaque para a esquerda etílica do Antonio’s e Dom Helder, “o humilde”. Diferentemente de alguns imitadores ilustres de hoje que à época militavam na esquerda, Nelson jamais se preocupou em ser politicamente correto ou nada equivalente, já que essa terminologia lhe é posterior. Entre as inúmeras e saborosas crônicas, três ou mais abordaram, como paródia, um dos seus temas analíticos preferidos ou uma das suas obsessões, como preferia dizer: “a invasão dos idiotas”. Creio que o nome talvez recebesse certa influência orwelliana, mas a estrutura de análise faz-me recordar a A Rebelião das Massas de Gasset.

Resumidamente, dizia Nelson que os cretinos sempre viveram bem adaptados ao mundo e o mundo a eles, porque esses personagens eram os primeiros a se reconhecer como tal e se esgueiravam nas sombras admirando os mais capazes. Havia um sadio equilíbrio. Os melhores faziam tudo e os idiotas, ora, faziam filhos e pronto. Citava como referência uma boa senhora, telefonista aposentada, que declarava sem constrangimentos não ser muito boa do “intelectual” e, respeitosamente, ele a considera a última idiota confessa de que teve notícia, pois nalgum dia um deles havia subido num caixote de cebolas e iniciado um discurso. Em poucos minutos juntara-se em torno uma multidão ululante: outros idiotas naturalmente. Dessa maneira descobriram que estavam em maior número e o resultado foi que, progressivamente, o mundo acabou ficando à mercê deles a ponto – dizia Nelson – de que só eles passaram a ter acesso a tudo: cargos, fortuna, influência, aplausos, prestígio, amantes etc. Citando textualmente: “…eles explodem por toda parte: – são professores, sociólogos, poetas, magistrados, cineastas, industriais. O dinheiro, a fé, a ciência, as artes , a tecnologia, a moral, tudo, tudo está nas mãos dos patetas”.

O efeito colateral disso seria que muitos dos “melhores”, para sobreviver, passaram a fazer-se passar por imbecis. Dizia Nelson que, freqüentemente, lambem as botas dos idiotas como cadelinhas amestradas. Diria eu que há os que aderem com entusiasmo aos “valores” e aos costumes da verdadeira classe dominante, mas há, também, quem cultive secretamente certo bom senso e até o desprestigiado exercício do raciocínio, embora de público assuma, prudentemente, a “persona” de idiota.

Capa da obra: "A Rebelião das Massas", de José Ortega y GassetNão seria de esperar, porém, que esse fosse o fim da história e é a partir disso que gostaria de dar minha humilde contribuição. Creio que o quadro já evoluiu da seguinte maneira: surgiu uma outra categoria que espreitava o panorama e que prima pelo oportunismo. Trata-se do esperto. Na verdade, nada a ver com o garotão da Augusta e então vamos chamá-lo de “neo-esperto” ou, se preferirem, “esperto verdadeiro”. O representante dessa categoria pode ser mais ou menos talentoso, mas pode também ser mais ou menos estúpido, não importa. O que o distingue é a capacidade de tirar proveito da terra arrasada resultante da ascensão dos idiotas e da subseqüente submersão do mérito. Quem conheceu essa raspa de tacho que se encontra nos cargos de governo atualmente, sabe do que estou falando. De um modo geral eram o rebotalho das suas turmas na universidade: a “turma do fundão” a que já me referi uma vez. Só escapa o presidente, é claro, que lá nunca esteve e, justiça seja feita, nunca manifestou essa pretensão. Mas são todos tremendamente espertos embora, para continuar sendo justo, isso não seja um atributo exclusivo de petralhas e filopetralhas. Também não depende de inteligência nem de falta dela: é uma questão de adestramento. Ocorre que essa gente, quando adquire poder e cultiva seu viés revolucionário, torna-se um problema muito sério. A arte consiste em falar aos idiotas como se fosse um deles – o que não é necessariamente falso – e utilizar, sempre que possível, o talento dos simuladores, que para não se desmascararem submetem-se como se fossem, de fato, desprovidos de discernimento quando, na verdade, são desprovidos de caráter.

Uma das técnicas que melhor evidenciam o processo de hegemonia dos espertos é o manejo desonesto aplicado a idéias nobres como liberdade, democracia, justiça etc. Mais ainda a maneira como são usadas as instituições, ritos e formalidades, esvaziados do seu conteúdo, para legitimar abusos de toda sorte e impor sofregamente a vontade dos novos senhores. Não há escrúpulos porque, na verdade, não acreditam em nenhuma dessas coisas. Consideram-nas apenas úteis pois, segundo a sua mitologia, são instrumentos de dominação que eram antes usados pelas elites e que agora estão a seu serviço, ou seja, a serviço do bem. Como os idiotas não notam a diferença e os falsos idiotas fingem não perceber, a armadilha funciona à perfeição.

Exemplos dessas espertezas não faltam e podemos citar alguns:

  • Entre nós, tornaram-se comum os decretos, medidas provisórias ou mesmo projetos de lei contendo os chamados dispositivos transgênicos, ou seja, no meio de um texto que estabelece regras para determinado assunto é embutido um artigo de natureza diversa que passa contrabandeado, porque os nossos legisladores, mesmo os que seriam contra, não costumam ler com atenção tudo o que votam nem querem se aporrinhar.
  • São dados títulos que sugerem exatamente o inverso do que propõem. Que tal um “estatuto da igualdade racial.” que, de cabo a rabo, implanta regras racistas, discriminatórias e divide a população em facções em litígio atrás de certas garantias ou privilégios?
  • Vale a pena ler o conjunto de reformas constitucionais propostas pelo Napoleão de hospício que infelicita os venezuelanos. Como se trata de um plebiscito, junto com a reeleição eterna, criação do “Poder Popular” e outras técnicas bolchevistas, vêem umas iscas do tipo: redução da jornada de trabalho para 6 horas diárias.
  • O presidente Callamares e seus inúmeros ministros apresentam argumentos incríveis para justificar a prorrogação da tal CPMF. Chegam a formar uma antologia de sofismas, mas a medalha de ouro, a meu ver, é ganha quando fingem ignorar que todos pagam esse tributo embutido em tudo. Mesmo que se trate de gente recolhida na “turma do fundão”, só pode ser uma esperteza na maior cara dura.

Agora, o que tira realmente essa gente do sério, o que fere os seus brios revolucionários levando-os à exasperação, é quando algum atrevido, além de não ser, se nega a aceitar o papel de idiota. Rejeitar as suas espertezas é a suprema injúria, desorganiza o seu mundinho mental, deixando-os com os brios “mais eriçados que as cerdas bravas do javali”, como diria o velho Nelson.

Chávez, depois de desrespeitar todas as normas da boa convivência diplomática, se pudesse mataria o Rei Juan Carlos por causa daquele “por qué no te callas?”. Callamares dispara perdigotos em discursos desconexos porque há quem esteja fazendo oposição à voracidade desmedida do primeiro e único bom governo “destepaís” em quinhentos anos. O ricaço da Augusta deu sorte, porque hoje nem os ricos escapam, a não ser que se façam de idiotas, coisa que já virou costume.

Conselho final: se você não está disposto a assumir o papel que lhe é destinado e “babar na gravata”, tome cuidado. Poderá ser vítima de algum “círculo bolivariano” ou então, na melhor das hipóteses, ser atingido por um perdigoto.


Por João de Oliveira Nemo.

O autor é sociólogo e consultor de empresas em desenvolvimento gerencial.
Publicado originalmente no Mídia Sem Máscara, em 4 de dezembro de 2007.


Nota da editoria:

Imagem da capa: “Don’t be stupid” (2019), de Michael Slutsker.


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