A obscenidade, a mídia e o aviltamento da humanidade

Obra: "Anguish (Artist’s Mother)" (1950), por David Alfaro Siqueiros (1896 - 1974).

O Brasil inventou a categoria do OBVIOSCENO: aquilo que, justamente por ser óbvio, é proibido como obsceno.
Olavo de Carvalho (1947 – 2022)



A origem da palavra obsceno não é certa, mas algumas fontes apontam o seu significado para algo como “aquilo que está fora de cena”. Vamos mais longe e digamos que obsceno é aquilo que deve estar fora de cena, que não deve ser exibido.

A palavra dever implica necessariamente uma ordem moral, e é aqui que a nossa conversa se torna custosa. O culto que existe hoje ao relativismo opera como um agente entrópico no percurso da comunidade humana, causando bloqueios e fracturas em qualquer tentativa de discussão sobre temas elementares.

A primeira questão que surge na mente contemporânea é “mas quem tem o direito ou o privilégio de decidir o que deve ser exibido ou não?” Daqui se partiria facilmente para argumentos sobre liberdade de expressão, hegemonia, opressão, censura, patriarcado, capitalismo, fascismo, e por aí fora, sem que se chegasse a ter uma verdadeira e salutar dialéctica.

Mas antes de cairmos em abstrações extremadas, olhemos para a realidade: esta é a primeira vez na história em que qualquer pessoa pode assistir a obscenidades (pela ficção ou pela mídia), desde a violência física a estímulos de devassidão, durante TODOS os dias da sua vida.

Pensemos no seguinte: nem um guerreiro medieval via sangue, tripas, enfim, cenários grotescos, durante TODOS os dias da sua vida. Mas o mais simples Zé Manel que vive lá no meio do nada, tendo acesso aos meios de comunicação social, pode, se quiser, alimentar-se de tragédia, desgraça e despudor, transformando isso até em vício. Não é preciso muito, basta assistir o telejornal e alguns seriados várias vezes na semana. Nos meios urbanos o risco de entrar nesse círculo vicioso é incomensuravelmente maior.

O homem comum contemporâneo tem contacto com a desgraça, a tragédia e o despudor a um nível que o enlouquece. Psicologicamente ele é forçado a produzir uma dessensibilização que pode tocar a neurose, cuja consequência, não raro, vem a ser a total descrença no Bem, ou então, a crença de que o Bem será construído por meio de aparelhos burocráticos, ou até da força. Em qualquer dos casos, ele já perdeu a noção do que é, objectivamente, o Bem.

Não se trata agora de censurar ou esconder a parte grotesca da realidade, mas sim de entender de que modo a exposição persistente a ela avilta o ser humano e, por consequência, a humanidade inteira. Este vício de imediatez, que nasce da preferência pela emoção em detrimento do intelecto, produz uma ilusão de realidade. A vida, na sua universalidade, não é como diz o conjunto dos conteúdos mediáticos. E sem uma visão metafísica coerente e assente na realidade, a pessoa desfragmenta-se perante a falta de sentido.


Por Francisca Irina.
Pulicado originalmente pelo portal Tribuna Diária, em 15 de fevereiro de 2023.


Notas da editoria:

Imagem de capa “Anguish” (1950), por David Alfaro Siqueiros (1896 – 1974).


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