“Se somos contra o Estado, somos apátridas. Se fazemos o bem, somos inimigos.
Se falamos a verdade, somos perigosos. Somos tudo, menos o que eles querem!”
Sócrates
Javier Milei, o recém-eleito presidente da Argentina, é conhecido pela sua relação excêntrica com os seus cachorros. Existem muitas peculiaridades sobre os cães de Milei, incluindo o fato de que eles são clones literais (sim, realmente); mas, para mim, os nomes deles são o mais interessante.
Todos os cachorros receberam nomes relacionados a libertários e/ou economistas. Mais notáveis são os seus cães Robert e Lucas, em homenagem ao falecido economista Robert Lucas. Os seus outros dois cachorros são chamados de Milton e Murray — em conexão, respectivamente, com os economistas/libertários Milton Friedman e Murray Rothbard.
Essas duas últimas figuras são de interesse porque, embora tivessem muito em comum, Friedman e Rothbard, num sentido importante, eram adversários.
Em 1977, Rothbard escreveu um artigo explicando o porquê. Os motivos apresentados podem ser diferentes daquilo que você poderia pensar. Rothbard era um anarcocapitalista engajado (assim como Milei), ao passo em que Friedman poderia ser descrito mais como um liberal clássico. No entanto, essa, conforme Rothbard, não constituía a principal divisão entre eles. Nas palavras de Rothbard, “o que divide o movimento [libertário] agora, a verdadeira divisão, não é o confronto anarquista versus minarquista”.
Em vez disso, de acordo com Rothbard, o que realmente dividiu o movimento foi a resposta a uma pergunta simples. E considero que é através dessa pergunta que possamos encontrar a lente mais adequada para analisar Milei.
A questão é: você odeia o Estado?
A arte de odiar o Estado
Rothbard considerava Friedman um adversário porque Friedman não odiava o Estado. Rothbard considerava o Estado “uma gangue predatória de criminosos”; e, como tal, sustentava a convicção de que “o Estado é o inimigo da humanidade”.
Em contraste, Rothbard critica Milton Friedman e o seu filho David Friedman (um anarquista como Rothbard) alegando que eles não odeiam o Estado. Rothbard caracteriza tanto Milton quanto David como defensores do encolhimento — ou da abolição — do Estado apenas pelo motivo de que a análise utilitarista de custo-benefício parece justificar esse encolhimento ou essa abolição.
Para Rothbard, não importa que David seja um anarquista e que Milton seja um liberal clássico. Ele considera inaceitáveis ambas as posições porque eles não odeiam suficientemente o Estado. Na visão de Rothbard, isso é insuficiente para coloca-los na condição de aliados. Em comparação, alguém que não é filosoficamente libertário pode ser um aliado desde que, assim como Rothbard, odeie o Estado.
Para auxiliar a decidir se alguém odeia o Estado, Rothbard propõe uma simples hipótese imaginária. Se existisse um botão mágico que, quando pressionado, abolisse o Estado, você o pressionaria com tanta força a ponto de ficar com uma bolha no dedo — ou faria uma análise de custo-benefício? Para citar Rothbard:
“A posição [do radical] de apertar o botão decorre do ódio profundo e permanente do abolicionista em relação ao Estado e à sua vasta, imensa máquina de crime e opressão. Com tal visão integrada de mundo, o libertário radical jamais poderia sonhar em enfrentar um botão mágico ou qualquer problema da vida real com algum cálculo seco de custo-benefício. Ele sabe que o Estado deve ser diminuído da forma mais rápida e completa possível. Ponto final.”
É fácil confundir o que Rothbard está aqui dizendo com uma oposição à realização de mudanças graduais em prol da obtenção da liberdade no lugar da realização de mudanças extremas. Não é isso que Rothbard está dizendo. Rothbard não vê problemas com mudanças graduais sendo o caminho para a liberdade, caso elas sejam necessárias. Para ele, trata-se de uma questão sobre a motivação por trás do gradualismo.
“Não existe um único abolicionista que não aproveitaria um método viável — ou um ganho gradual — caso tal método ou ganho aparecesse diante de si. A diferença é que o abolicionista sempre ergue a bandeira do seu objetivo final, nunca esconde os seus princípios básicos e deseja chegar à sua meta de maneira tão rápida quanto humanamente possível. Assim, embora o abolicionista aceite um passo gradual na direção certa caso isso seja tudo que possa alcançar, ele sempre o admite a contragosto, como apenas um primeiro passo em direção a um objetivo que ele, o abolicionista, sempre mantém extremamente claro.”
Milei odeia o Estado
Milei é vítima de rotulagem desleixada. Se você pesquisar no Twitter, encontrará infinitos argumentos sobre quais rótulos adequadamente o descrevem. Alguns argumentam que ele seja de extrema-direita. Outros afirmam que ele sequer seja de direita. Milei reivindica o rótulo de anarcocapitalista. Outros dizem que ele não é realmente um anarcocapitalista — ou que os anarcocapitalistas não são realmente anarquistas! Já vi estrategistas políticos discutirem desesperadamente se Milei é populista ou não para tentarem preservar a pretensão deles de estratégia política bem-sucedida. A página referente a Milei na Wikipédia destaca que ele é descrito como ultraliberal e ultraconservador. Ainda confuso?
Esses exercícios de rotulagem são uma perda de tempo. À la Rothbard, temos uma maneira muito melhor de avaliar Milei. Que é dando uma resposta a esta simples pergunta: Milei odeia o Estado?
Parece que a resposta é um desavergonhado sim. Há dezenas de vídeos de Milei ao longo dos anos que estão circulando no Twitter, e tais vídeos possuem um tema em comum. Ao explicar o que há de errado com a sua nação, ele frequentemente combina “o Estado”, os políticos e burocratas e os esquerdistas num matizado coquetel repleto de palavrões. Aqui estão alguns vídeos que compartilho para você assistir a seu critério.
Três falas de Milei:
“Esta é uma sociedade infectada pelo socialismo — e o que precisamos conseguir é remover o socialismo da mente das pessoas.”
“Os políticos são sociopatas que querem nos fazer acreditar que somos deficientes mentais em todos os sentidos, porque não podemos viver sem eles.”
“Se o país fosse dividido entre, de um lado, quem produz e, de outro, os malditos políticos, os sindicalistas, todo esse bando de parasitas, eles afundariam e morreriam.”
É certo que eu, Peter Jacobsen, não falo espanhol. É possível que algumas das legendas estejam incorretas nesses vídeos (embora eu tenha visto muitos afirmarem que estão, sim, corretas).
Mas isso nem importa. Mesmo sem as palavras, é possível perceber o desdém que Milei tem no rosto ao falar sobre os parasitas que compõem o Estado. Você pode ver a alegria descontrolada dele enquanto discorre sobre o corte de agências governamentais. Milei, de fato, odeia o Estado.
Alguns radicais podem ser tentados a dizer que as políticas que ele propõe são mais brandas do que eles gostariam. Por exemplo, por que não abolir a moeda governamental em vez de dolarizar? Mas lembre-se: odiar o Estado não configura uma questão de se as mudanças são graduais ou radicais — a verdadeira questão está aqui: qual é a motivação para a política monetária de Milei? É por uma análise de custo-benefício — ou pelo desprezo que ele possui em relação ao Estado argentino? Esse último parece estar mais no âmago da sua questão.
Um chefe de Estado que odeia o Estado
A posição de Milei se mostra única porque, até onde eu sei, ele é o único líder de país na história recente que se encaixa nos critérios de Rothbard. Curiosamente, os libertários que não odeiam o Estado (Rothbard os rotula de libertários “conservadores” em oposição aos libertários radicais) sem dúvida tiveram um lugar à mesa.
Embora muitos libertários não respaldassem Reagan, não é segredo que Milton Friedman exerceu influência considerável no governo desse presidente. Friedman o aconselhou informalmente na campanha dele e formalmente como membro do Conselho Consultivo de Política Econômica da Presidência.
O governo Reagan alcançou algum grau de sucesso com objetivos libertários. Famosamente, Reagan, logo no começo, baixou os impostos. Entretanto, uma falta de vontade — ou de capacidade — para reduzir os gastos de forma significativa conduziu a rombos orçamentários elevados e, por fim, a aumentos de impostos durante a seu governo (e, possivelmente, depois).
Se Friedman, através de Reagan, foi bem-sucedido em propiciar mais liberdade a longo prazo, isso é uma questão que deixarei para você julgar. Eu sei como Rothbard responderia.
Então, ou já vimos o efeito libertário “conservador” na política, ou ele não conseguiu um lugar à mesa que fosse realmente verdadeiro. Em ambos os casos, Milei parece oferecer uma vereda diferente. Com Milei, temos, agora, a oportunidade de ver o que acontece quando um líder libertário “radical” comanda o Estado. Eis a pergunta que fica: isso será o suficiente?
Milei enfrenta vários obstáculos para promover mudanças na Argentina. A economia está em péssimo Estado. Os políticos em exercício, assim como os privilegiados que eles apoiam, têm amplo incentivo para tentar impedir Milei de realizar os seus objetivos. Também não é óbvio que a comunidade internacional será amigável com um líder que está trilhando um caminho tão extremo — como o governo americano reagirá se a guinada radical de Milei pela diminuição do Estado começar a lançar dúvidas sobre o leviatã cada vez maior dos Estados Unidos?
Deixando de lado a oposição, parece que o governo Milei nos permitirá responder a uma pergunta há muito implícita naquele ensaio de Rothbard do ano de 1977. O ódio ao Estado é suficiente para promover mudanças reais rumo à liberdade e à prosperidade num dos ambientes políticos mais caóticos do mundo? Veremos em breve.
Por Peter Jacobsen.
Publicado em 5 de dezembro de 2023 no website do Instituto Rothbard Brasil.
Nota da editoria:
Imagem da capa: “Javier Milei president of Argentina ”, imagem gerada por gavi-dm.
Para mais detalhes, acesse: https://arthub.ai/.