“Não é possível tornar o inferno atraente, então o Demônio torna atraente o caminho que leva até lá.”
São Basílio de Cesareia (329 ou 330 – 379).
E se você pudesse, com sua imaginação, criar tudo o que desejasse, de modo que nunca mais precisasse de ninguém? E se fosse tão voltado para si mesmo e tão independente a ponto de não suportar a convivência com outras pessoas?
Segundo C. S. Lewis, nessas condições, você não seria uma pessoa com um corpo sólido, mas seria como um fantasma diante da realidade. É assim que ele descreve os moradores do Vale da Sombra da Morte, em sua obra de ficção O Grande Abismo (ou O Grande Divórcio, dependendo da tradução). Os habitantes dessa cidade vivem aprisionados em seus desejos e ilusões egoístas, incapazes de se relacionar. Eles constroem suas casas muito distantes umas das outras, porque não conseguem conviver com vizinhos. Criam tudo o que desejam usando apenas a imaginação, então não têm necessidade uns dos outros.
As descrições feitas por Lewis me fizeram pensar no contexto de relativismo em que vivemos atualmente. Assim como aquela cidade, em que tudo é feito de imaginação, a chamada pós-modernidade nos apresenta um mundo sem solidez, sem verdade absoluta e no qual somos convidados a criar nossas próprias verdades e sermos tudo o que quisermos. Há até quem acredite que possa ser um cavalo ou um gato – e ai de quem ousar discordar!
Os moradores do Vale da Sombra da Morte, por não serem pessoas sólidas, seus pés se ferem ao pisar em grama verdadeira, suas mãos não suportam sequer o peso de uma folha do mundo real. E há o medo de que o princípio de anoitecer milenar que a cidade experimenta, se transforme em escuridão eterna, com perigos reais para habitantes de casas imaginárias que, obviamente, não servem de proteção. De modo semelhante, em nosso mundo, aqueles que desconsideram a realidade, preferindo criar suas fantasias e fazer de conta que podem construir suas próprias verdades, não têm a menor condição de lidar com as tempestades reais da vida, não podem suportar o peso da realidade.
Na ficção de Lewis, o Vale da Sombra da Morte é o prenúncio do inferno, que chegará plenamente com a noite. Em nosso mundo atual, o relativismo é também uma porta escancarada para o coração entregue a si, que se recusa a reconhecer a autoridade de Deus, mas prefere usurpar o lugar do Criador ao tentar construir a si mesmo e criar suas próprias regras. Não é esse o princípio do inferno?
Escrito por Noeme Rodrigues de Souza Campos.
Publicado originalmente no website da Editora Ultimato, em 13 de junho de 2021.
Nota do editor:
A imagem associada a esta postagem ilustra recorte da obra: “Pandemonium“, criada em 1825 pelo pintor inglês John Martin (1789 – 1854).