Os histéricos no poder

Obra: "Communist Angel" (2021), por Loi Duc.

Toda unanimidade é burra. Quem pensa com a unanimidade não precisa pensar.
Nelson Rodrigues (1912 – 1980)



Uma das experiências mais perturbadoras que tive na vida foi a de perceber, de novo e de novo ao longo dos anos, o quanto é impossível falar ao coração, à consciência profunda de indivíduos que trocaram sua personalidade genuína por um estereótipo grupal ou ideológico.

Diga você o que disser, mostre-lhes mesmo as realidades mais óbvias e gritantes, nada os toca. Só enxergam o que querem. Perderam a flexibilidade da inteligência. Trocaram-na por um sistema fixo de emoções repetitivas, acionadas por um reflexo insano de autodefesa grupal.

No começo não é bem uma troca. O estereótipo é adotado como um revestimento, um sinal de identidade, uma senha que facilita a integração do sujeito num grupo social e, libertando-o do seu isolamento, faz com que ele se sinta até mais humano. Depois a progressiva identificação com os valores e objetivos do grupo vai substituindo as percepções diretas e os sentimentos originários por uma imitação esquemática das condutas e trejeitos mentais do grupo, até que a individualidade concreta, com todo o seu mistério irredutível, desapareça sob a máscara da identidade coletiva.

Essa transformação torna-se praticamente inevitável quando a unidade do grupo tem uma forte base emocional, como acontece em todos os movimentos fundados num sentimento de “exclusão”, “discriminação” e similares.

Não me refiro, é claro, aos casos efetivos de perseguição política, racial ou religiosa. A simples reação a um estado de coisas objetivamente perigoso não implica nenhuma deformação da personalidade. Ao contrário: quanto mais exageradas e irrealistas são as queixas grupais, tanto mais facilmente elas fornecem ao militante um “Ersatz” de identidade pessoal, precisamente porque não têm outra substância exceto a ênfase mesma do discurso que as veicula.

À dessensibilização da consciência profunda corresponde, em contrapartida, uma hipersensibilização de superfície, uma suscetibilidade postiça, uma predisposição a sentir-se ofendido ou ameaçado por qualquer coisinha que se oponha à vontade do grupo.

No curso desse processo, é inevitável que o amortecimento da consciência individual traga consigo o decréscimo da inteligência intuitiva. As capacidades intelectuais menores, puramente instrumentais, como o raciocínio lógico verbal ou matemático, podem permanecer intactas, mas o núcleo vivo da inteligência, que é a capacidade de apreender num relance o sentido da experiência direta, sai completamente arruinada, às vezes para sempre.

A partir daí, qualquer tentativa de apelar ao testemunho interior dessas pessoas está condenada ao fracasso. A experiência que elas têm das situações vividas tornou-se opaca, encoberta sob densas camadas de interpretações artificiais cujo poder de expressar as paixões grupais serve como um sucedâneo, hipnoticamente convincente, da percepção direta.

O indivíduo “sente” que está expressando a realidade direta quando seu discurso coincide com as emoções padronizadas do grupo, com os desejos, temores, preconceitos e ódios que constituem o ponto de intersecção, o lugar geométrico da unidade grupal.

O mais cruel de tudo é que, como esse processo acompanha “pari passu” o progresso do indivíduo no domínio da linguagem grupal, são justamente os mais lesados na sua inteligência intuitiva que acabam se destacando aos olhos de seus pares e se tornando os líderes do grupo.

Um grau elevado de imbecilidade moral coincide aí com a perfeita representatividade que faz do indivíduo o porta-voz por excelência dos interesses do grupo e, na mesma medida, o reveste de uma aura de qualidades morais e intelectuais perfeitamente fictícias.

Não conheço um só líder esquerdista, petista, gayzista, africanista ou feminista que não corresponda ponto por ponto a essa descrição, que corresponde por sua vez ao quadro clássico da histeria.

“O mínimo que você precisa saber para não ser um idiota”, escrita por Olavo de Carvalho. Livro publicado pela Editora Record, sob ISBN: 978-8501402516.O histérico não sente o que percebe, mas o que imagina. Quando o orador gayzista aponta a presença de cento e poucos homossexuais entre cinquenta mil vítimas de homicídios como prova de que há uma epidemia de violência anti-gay no Brasil, é evidente que o seu senso natural das proporções foi substituído pelo hiperbolismo retórico do discurso grupal que, no teatro da sua mente, vale como reação genuína à experiência direta.

Quando a esposa americana, armada de instrumentos legais para destruir a vida do marido em cinco minutos, continua se queixando de discriminação da mulher, ela evidentemente não sente a sua situação real, mas o drama imaginário consagrado pelo discurso feminista.

Quando o presidente mais mimado e blindado da nossa História choraminga que levou mais chicotadas do que Jesus Cristo, ele literalmente não se enxerga: enxerga um personagem de fantasia criado pela propaganda partidária, e acredita que esse personagem é ele. Todas essas pessoas são histéricas no sentido mais exato e técnico do termo. E se não sentem nem a realidade da sua situação pessoal imediata, como poderiam ser sensíveis ao apelo de uma verdade que não chega a eles por via direta, e sim pelas palavras de alguém que temem, que odeiam, e que só conseguem enxergar como um inimigo a ser destruído?

A raiz de todo diálogo é a desenvoltura da imaginação que transita livremente entre perspectivas opostas, como a de um espectador de teatro que sente, como se fossem suas, as emoções de cada um dos personagens em conflito. Essa é também a base do amor ao próximo e de toda convivência civilizada.

A presença de um grande número de histéricos nos altos postos de uma sociedade é garantia de deterioração de todas as relações humanas, de proliferação incontrolável da mentira, da desonestidade e do crime.



Por Olavo de Carvalho (1947 — 2022).


Publicado originalmente no Diário do Comércio
em 12 de dezembro de 2012 (replicado em 24 de janeiro de 2023 no website de Percival Puggina, a partir do que decidimos fazê-lo também de nossa parte).



Nota da editoria:

Imagem da capa: “Communist Angel” (2021), por Loi Duc.


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