Na manhã de hoje, saí de Florença, cidade onde nasceu Machiavel, para revisitar a pequena e belíssima urbe de San Gimignano. Pensando no autor florentino, lembrei-me de um artigo que escrevi no ano passado e resolvi atualizá-lo.
Sou cidadão de um país onde as decisões mais estapafúrdias são tratadas como parâmetros de normalidade. Alguém dirá que é mera questão de ponto de vista. No entanto, sempre que, em extraordinário esforço de angulação, me desloco para esse tal “ponto de vista”, vejo tudo ainda pior.
Muito pior. Como podem afirmar que a democracia e o estado de direito que todos queremos estejam sendo servidos ante as situações que descrevo a seguir?
Um criminoso condenado em três instâncias por corrupção passiva e lavagem de dinheiro foi posto em liberdade para disputar a presidência da República.
Bandidos descem do morro para a cidade, mas a polícia não podia subir da cidade ao morro. Agora, há novas regras do STF: a polícia pode subir, mas só de dia, e quando sobe tem que manter “proporcionalidade” (o que, para mim, significa que deve entrar com maior contingente e armamento mais pesado, mas não foi isso que eles quiseram dizer).
Uma urna eletrônica, que qualquer pessoa com olhos de ver sabe ser opaca foi oficial e inquestionavelmente proclamada modelo de transparência e objeto de fé pública.
Os constituintes de 1988 vão sendo depostos por pequeno grupo de guardiões daquele trabalho e esses guardiões utilizam a Constituição mais ou menos como maîtres e chefs usam seus velhos livros de receitas: ao seu próprio gosto.
O crime de “lesa-majestade” volta à cena, com a consequente morte cívica dos réus e se instala a prática de estender as restrições de direitos às suas famílias.
Inquéritos são abertos para permanecer ameaçadoramente abertos.
O presidente que emergiu das urnas torna público seu desejo de vingança e ela já vai sendo saciada; seus alvos tombam.
A sociedade é ameaçada, viu a censura se impor e se tornar matéria legislativa de máxima urgência. A liberdade de opinião e expressão é tolhida de múltiplas formas, o Estado se apetrecha para xeretar os assuntos alheios e a vida privada se torna objeto de pescaria probatória.
Os itens acima são apenas alguns dentre muitos, num país onde as palavras vão para um lado e as ações na direção oposta.
Na política nacional, o Direito se converteu em instrumento de proteção do Estado; não mais serve ao cidadão e à sua liberdade. Nela, com dificuldades e receios, fala-se inutilmente à irreverente surdez e ao desprezo dos poderes.
Não passa pela cabeça dos novos príncipes das lições de Machiavel que nas sociedades modernas, a injustiça praticada pelo Estado contra um cidadão é sentida na sociedade inteira. Em cada um que é silenciado, cala-se um pouco a minha voz. Levam-me sempre que alguém é preso injustamente.
Isso não guarda qualquer semelhança com as minúsculas razões de confraria do “mexeu com um, mexeu com todos”. Não! É algo nobre, que nos vem na alma quando a injustiça se instala, a lei é descumprida e a Constituição manejada, repito, como maîtres e chefs usam seus livros de receitas.
Por Percival Puggina.
Publicado no website do autor em 2 de junho de 2023.
Notas da editoria:
Imagem da capa: “The cunning thief” (1931), por Paul-Charles Chocarne-Moreau (1855 – 1931).
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