“Muitos odeiam a tirania apenas para que possam estabelecer a sua.”
Platão (427 ou 428 a. C. – 348 a. C.)
Se eu fosse resumir a estimulante mensagem do século XVI da monografia de Étienne de La Boétie, O Discurso da Servidão Voluntária, eu diria que não somos vítimas do mundo que vemos. Invertemos causa e efeito. A tirania não está acontecendo conosco, está acontecendo por nossa causa.
Estamos nos enganando sobre nosso papel em permitir nossa opressão? Como Murray Rothbard colocou em sua brilhante introdução ao Discurso de La Boétie, “[T]oda tirania deve necessariamente basear-se numa aceitação popular geral”.
Pior ainda, Aldous Huxley estava certo ao dizer que as pessoas abraçariam com alegria sua opressão? Como Neil Postman escreveu em Amusing Ourselves to Death, “[N]a visão de Huxley, nenhum Big Brother é obrigado a privar as pessoas de sua autonomia, maturidade e história. Segundo ele, as pessoas passarão a amar sua opressão, a adorar as tecnologias que destroem sua capacidade de pensar”.
Huxley escreveu: “[A] maior parte da população não é muito inteligente, teme responsabilidades e não deseja nada melhor do que ouvir o que deve fazer”.
Se você não mora em São Francisco ou em outra cidade distópica, caminhe pela cidade e observe como as pessoas são naturalmente cooperativas e pacíficas. Você pode se perguntar, como La Boétie fez,
como pode ser que tantos homens, tantos burgos, tantas cidades, tantas nações suportam às vezes um tirano só, que tem apenas o poderio que eles lhe dão, que não tem o poder de prejudicá-los senão enquanto têm vontade de suportá-lo, que não poderia fazer-lhes mal algum senão quando preferem tolerá-lo a contradizê-lo.
“Tolerá-lo em vez de contradizê-lo” sempre foi uma tendência humana e algo com o qual estamos muito familiarizados.
O Discurso de La Boétie foi influenciado pelo ensaio do filósofo grego Plutarco “On Compliancy”. Michael Fontaine, professor de clássicos da Cornell, está trabalhando em uma nova tradução de “On Compliancy”. Em uma série de palestras, uma delas pública, Fontaine explica que Plutarco explorou a disopia (não confundir com distopia). A disopia é tanto uma “sensação emocional de ser pressionado e intimidado” quanto um “ato de ceder a um pedido impróprio ou inapropriado”. Podemos dizer que todos nós experimentamos disopia quando alguém nos pede para fazer algo irracional e, contra nosso melhor julgamento, fazemos de qualquer maneira.
Plutarco não estava necessariamente escrevendo sobre interações coercitivas onde a força é aplicada; ele estava focado em situações em que “está em seu poder dizer não”. Talvez você tenha participado de uma reunião no local de trabalho em que alguém propôs que os não vacinados fossem demitidos. Você aplaudiu? Você deu seu consentimento sem dizer nada em oposição? Você argumentou contra os decretos de vacina para estudantes cujos riscos da vacina provavelmente excediam quaisquer benefícios? Você apoiou os direitos dos outros de tomar suas próprias decisões médicas?
La Boétie observou corretamente que somos “traidores” de nós mesmos ao cooperar em nossa opressão:
Aquele que vos domina tanto só tem dois olhos, só tem duas mãos, só tem um corpo, e não tem outra coisa que o que tem o menor homem do grande e infinito número de vossas cidades, senão a vantagem que lhe dais para destruir-vos. De onde tirou tantos olhos com os quais vos espia, se não os colocais a serviço dele? Como tem tantas mãos para golpear-vos, se não as toma de vós?
La Boétie implorou: “Decida não mais servir e sereis livres”. Ele continuou: “Não pretendo que o empurreis ou sacudais, somente não mais o sustentai, e o vereis como um grande colosso, de quem subtraiu-se a base, desmanchar-se com seu próprio peso e rebentar-se.
La Boétie reconheceu que há poucos no núcleo do poder, mas que o núcleo emprega centenas que empregam milhares que hoje empregam milhões “para que tenham na mão sua avareza e crueldade e que as exerçam no momento oportuno”.
Hoje, o governo tem seus tentáculos em todos os lugares e emprega uma porcentagem significativa da população. Como podemos retirar o consentimento? Se não pagarmos impostos, podemos acabar no tribunal, mesmo que sejamos o filho do presidente.
À primeira vista, a análise de La Boétie pode parecer não oferecer nenhum caminho prático para derrubar os tiranos de hoje. No entanto, olhe novamente.
Onde precisamos retirar nosso consentimento é dos apologistas do Estado. Rothbard explicou,
La Boétie destaca o ponto de que este consentimento é projetado, em grande medida pela propaganda bombardeada pelos governantes e seus apologistas intelectuais sobre o povo. Os instrumentos — de pão e circo, de mistificação ideológica — que os governantes de hoje usam para seduzir as massas e conquistar seu consentimento, permanecem os mesmos dos tempos de La Boétie. A única diferença é o enorme aumento do uso de intelectuais especialistas a serviço dos governantes. Mas neste caso, a principal tarefa dos oponentes das tiranias modernas é educacional: fazer o povo acordar para este processo, desmistificar e dessantificar o aparato estatal.
Hoje pode não ser fácil retirar o consentimento do governo. Ainda assim, podemos retirar o consentimento dos cortesãos contemporâneos do governo – acadêmicos, jornalistas, especialistas, comentaristas, influenciadores e administradores que, como escreveu Rothbard, “enganam as massas para obter seu consentimento”.
Esses “apologistas” tratam você principalmente de forma desrespeitosa; eles se dizem oráculos e dizem que você não tem capacidade de entender seus dogmas. Eles apelam para sua experiência e autoridade, mas oferecem poucas evidências. Eles anseiam por dinheiro e poder não conquistados servindo os consumidores, mas dominando os consumidores. Os princípios que permitem que a humanidade floresça não significam nada para eles. O antídoto é ignorá-los ou abrir a cortina para expor sua retórica vazia. Desligue a televisão e passe as noites de verão com seus entes queridos ou com um bom livro que fortaleça sua coragem moral.
Fontaine, traduzindo Plutarco, nos pede para superar nossa disopia, percebendo nossa tendência de “agradar as pessoas” e recuperando o poder de dizer não.
La Boétie ofereceu um caminho para encontrar nossa coragem moral. Os tiranos, observou ele, nunca são amados nem amam. A amizade genuína, observou ele, “nunca se entrega senão entre pessoas de bem e só se deixa apanhar por mútua estima; se mantém não tanto através de benefícios como através de uma vida boa; o que torna um amigo seguro do outro é o conhecimento que tem de sua integridade”.
Nem tiranos nem apologistas agem com integridade. Desenvolver o caráter respeitando a autonomia dos outros é um caminho para a liberdade. Plutarco argumentou, e La Boétie teria concordado, “ceder agrava os problemas em vez de resolvê-los”. Não haverá solução do Mágico de Oz. Não podemos simplesmente bater continência três vezes e voltar à “terra dos livres”. A simples leitura de La Boétie não liberta ninguém. Como escreveu o poeta William Blake, nossas algemas são forjadas pela mente. Com uma mudança de mentalidade, nos tornamos insensíveis à nossa disopia. À medida que mais de nós retiramos o consentimento, um futuro distópico pode ser evitado.
Por Barry Brownstein.
Publicado em 26 de junho de 2023 no website do Instituto Rothbard Brasil.
Para acessar o artigo original, escrito em inglês, clique aqui.
Notas da editoria:
Imagem da capa: “Lenin’s speech”, por Nikolai Gorshkov (1923 – 2009).
Confira, neste áudio, alguns comentários do filósofo Olavo de Carvalho (1947 – 2022) sobre como tornar-se mais corajoso: