“O sofrimento sempre acompanha uma inteligência elevada e um coração profundo.
Os homens verdadeiramente grandes experimentam uma grande tristeza, acometidos de uma melancolia súbita.”
Fiódor Dostoiévski
Em Anna Karenina, de Tolstói, me deparei com a cena de um quase pedido de casamento. A moça quer muito o pedido. O rapaz também toma consciência do seu profundo desejo pela felicidade que a vida ao lado daquela moça lhe proporcionaria. Mas, na iminência do pedido, ante a emoção e expectativa dos dois, a coragem não vem, perde-se o momento e nada acontece. Ambos compreendem que o instante se foi, a oportunidade foi perdida e a vida terá que seguir sem pedido, sem casamento. E os personagens seguem, abrem mão daquele sonho, aceitando de bom grado a vida real.
Ao ler aquilo, eu quis entrar na cena e dizer aos personagens que não precisavam desistir tão rápido. O pedido podia acontecer em outro momento, talvez no dia seguinte, quem sabe na outra semana… Mas a postura deles foi de total resignação e disposição para seguir em frente sem aquele sonho. Como leitora, me entristeci pela cena feliz que não veio. Depois compreendi que havia maior riqueza literária no sonho frustrado do que no desejo realizado, assim como há mais vida no mundo real do que no mundo das ilusões.
Me pus a pensar nos sonhos que não realizamos e que nunca realizaremos… E se os tivéssemos realizado? “E se…” pode ser só mais um jeito de desperdiçar a vida real imaginando cenas que não vivemos, nem viveremos.
Num tempo em que somos bombardeados pelo mantra “nunca desista dos seus sonhos”, os personagens de Tolstói vêm nos ensinar a desistir.
Sim, é preciso desistir de muitos sonhos! Sabedoria é ter o discernimento do instante em que perdemos e coragem para seguir em frente com a realidade que se apresenta diante de nós.
Desistir não é se entregar à infelicidade. É seguir em frente sem os lamentos pelo que poderia ter sido. É aceitar o que é, sem desperdiçar a vida ocupando-se de ideias fixas – não custa lembrar que foi uma ideia fixa que encerrou a vida de Brás Cubas, o defunto autor, personagem de Machado de Assis. A literatura clássica tem essa riqueza de, com um pouco de imaginação, nos tirar provisoriamente do mundo real para nos ensinar a viver com mais consistência a nossa realidade.
Essa geração que foi ensinada a nunca desistir dos sonhos é a mesma propensa a desistir da vida quando o sonho não acontece. É que faltam ferramentas para lidar com a vida, quando o que se tem são apenas frases prontas dos livros de auto ajuda, ou uma literatura pobre que serve meramente como instrumento de engajamento político numa causa qualquer.
Vejo que a boa literatura tem a capacidade de nos colocar diante dos dilemas existenciais universais e dizer: eis a condição humana! Não se trata de responsabilizar esse ou aquele grupo, culpar essa ou aquela pessoa. Apenas isso é o ser humano com suas mazelas e grandezas, agora viva com isso da melhor maneira que puder! Não se arraste vida a fora a lamentar pelo que não foi. Nem se agarre a expectativas inviáveis. Abrace a realidade e viva-a! Isso é que é viver! O resto é lamento, autopiedade ou ideia fixa a consumir seus dias e suas forças.
Não é um convite a não sonhar, mas a sonhar com os pés no chão! E, entre o sonho e a realidade, fique com a realidade!
Outro detalhe importante sobre os dois personagens mencionados, de Tolstói, é que eles podiam viver a realidade, sem transformar o sonho frustrado num grande drama existencial, porque suas vidas não eram voltadas para si mesmos. Ambos tinham consciência da importância do cumprimento do dever para com outras pessoas. Podiam ser felizes enquanto se ocupavam de servir aos outros, em vez de tentar agarrar com força sua própria felicidade.
Quem vive focado em si mesmo não tem estrutura para lidar com as frustrações, sem ser profundamente infeliz. A vida centrada em si é o tipo de existência mais miserável que alguém pode experimentar neste mundo, não importa quantos sonhos consiga realizar. Mas, quem pode viver além do próprio ego, pode também seguir feliz mesmo se não houver pedido e nem casamento.
Escrito por Noeme Rodrigues de Souza Campos.
Publicado originalmente no website da Editora Ultimato, em 12 de novembro de 2020.
Nota da editoria:
Imagem de capa: “La_Mélancolie”, do pintor rococó francês Louis-Jean-François Lagrenée (1725 – 1805).
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