“Sem bons livros e leituras espirituais, a salvação de nossas almas será moralmente impossível.”
Santo Afonso Maria de Ligório (1696 – 1787)
Trabalhando na tradução de um livro de Santo Afonso Maria de Ligório, escrito na segunda metade do século XVIII, vi escancarar-se uma vez mais um certo aspecto da brutal derrocada da escrita no mundo contemporâneo.
A imaginação coletiva do nosso tempo nos inclina a considerar, imediatamente, que um texto dessa época deva ser castiço, rebuscado, denso, de fastidiosa leitura e moroso avanço, características que fomos habituados a relacionar automaticamente ao clássico, ao antigo — mesmo que bem pouco antigo, como neste caso —, em contraposição aos valores inversos, que deveriam ser tanto mais encontrados quanto mais moderna for a literatura. Qual não seria a surpresa de muitos ao descobrir na pena de Santo Afonso, um dos mais maravilhosos escritores espirituais de todos os tempos, proclamado Doutor da Igreja em 1871, uma linguagem absolutamente límpida, objetiva e, sobretudo, viva e plena de expressão, qualidades não exclusivas do grande santo napolitano, mas que constituem antes a meta — e, portanto, o parâmetro de julgamento — de todo escritor digno do nome, desde tempos imemoriais.
Somente quando as letras começam a ser utilizadas sistemática e metodicamente como instrumento de dissimulação intelectual e estabelecimento de hegemonias ideológico-culturais, resultando na sempre crescente destruição da língua falada e escrita tanto por eruditos quanto pelos cidadãos comuns, é que nasce o fenômeno do “foucaultismo”: a arte sublime de dizer, dizer e nada dizer, construindo-se uma massa bruta e cinzenta de palavras inócuas, obscuras e desconexas contra a qual se possa contrastar outras palavras pontuais, igualmente frívolas, mas selecionadas precisa e cuidadosamente não pelo significado que carregam, mas pela capacidade de ativar certas reações psicológicas e comportamentais a elas previamente vinculadas pelo contexto ideológico do momento. Não é nada mais, ao fim e ao cabo, do que a aplicação à linguagem daquilo que Marx pregou para a filosofia, ao dizer que esta deveria servir não mais à contemplação do mundo, mas à sua transformação: corroê-la desde a essência, transformando-a já em outra coisa, e instrumentalizá-la para fins políticos.
Na época de Santo Afonso já se podia encontrar muito, mas muito lixo misturado à literatura autêntica, em quaisquer dos seus gêneros, e o mundo já havia testemunhado algumas das mais abjetas revoluções intelectuais e espirituais de sua história, as quais acabaram por lançar a produção científica e filosófica em um abismo no qual permanece até hoje. Mas Afonso não era um “filho de seu tempo”, ao menos não neste sentido: os grandes autores nos quais baseou toda uma vida de estudos fizeram-lhe partícipe de uma tradicional linhagem de homens cujos esforços intelectivos, no sentido mais amplo do termo, foram testados e atestados ao longo dos séculos, linhagem esta que ele próprio veio a honrar, posteriormente, com seu trabalho e seu modelo de vida.
Graças ao bom Deus, para cada Microfísica do poder há um volume das Meditações, para cada Vigiar e punir há um tomo da Teologia moral; mas, para cada jovem que hoje aprende a escrever com um Michel Foucault, principalmente nas universidades, quantos haverão que o façam à imitação da estirpe de um Afonso?
Por Daniel Marcondes.
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Nota da editoria:
Imagem da capa: “São Jerônimo escrevendo” (c. 1607), de Caravaggio (1571 – 1610).