“Quando o sol da cultura está baixo, também os anões lançam longas sombras.”,
Karl Kraus (1874 – 1936): jornalista e intelectual austríaco.
Irmão siamês do desconstrucionismo, o multiculturalismo é assim definido por um professor uspiano: Não tem sentido falar de verdade tout court, só de verdade para um determinado grupo cultural. O multiculturalismo apregoa uma visão caleidoscópica da vida e da fertilidade do espírito humano, na qual cada indivíduo transcende o marco estreito da sua própria formação cultural e é capaz de ver, sentir e interpretar por meio de outras apreciações culturais. O modelo humano resultante é tolerante, compreensivo, amplo, sensível e fundamentalmente rico: a capacidade interpretativa, de observação e até emotiva, se multiplica [1].
Qualquer pessoa que saiba ler e não tenha passado pela USP percebe que o projeto multiculturalista, assim definido (e essa definição não diverge de outras tantas que circulam nos meios universitários), se estrangula a si próprio no bercinho. Se toda verdade está condicionada à visão de um determinado grupo cultural, ninguém pode transcender o marco estreito da sua própria formação cultural e muito menos ver, sentir e interpretar por meio de outras apreciações culturais . Se alguém consegue saltar por cima das fronteiras culturais, é porque há uma verdade acima de todas elas e essa verdade é acessível à inteligência humana.
O multiculturalismo consiste, portanto, em fazer na prática aquilo mesmo que na teoria ele proclama ser impossível. É um caso extremo de paralaxe cognitiva, em que o sujeito afirma precisamente o contrário daquilo que o seu próprio ato de afirmar demonstra da maneira mais patente. É o deslocamento radical entre o eixo da experiência intelectual efetiva e o da construção teórica supostamente baseada nela.
A incongruência é tão patente, tão grosseira, que não posso acreditar seja filha da distração, gerada no leito das meras coincidências. Com efeito, a contradição aí embutida só permanece levemente camuflada pelo fato de que seus dois pólos se situam em planos diferentes: a teoria e a prática. O estudante, portanto, só pode continuar envolvido nessa prática se for induzido a jamais confrontá-la com a teoria, isto é, se ele se tornar incapaz de cotejar a expressão verbal da teoria com o conteúdo teorético afirmado implicitamente pela prática. Dito de outro modo: o adestramento no multiculturalismo consiste em habilitar o aluno para se persuadir de que sabe alguma coisa sempre que não sabe o que está fazendo com ela. O multiculturalismo é uma técnica de auto-embotamento intelectual baseada na estimulação contraditória rotinizada.
Não tem sentido, portanto, discuti-lo como teoria nem como prática. Só o que cabe é revelar o ardil psicológico por trás da articulação de ambas, e em seguida denunciar o conjunto como aquilo que é: um instrumento de dominação criado para transformar milhões de universitários em idiotas militantes, hipnotizados e postos a serviço de seus professores.
Às vezes fico até consternado de ver o esforço que brilhantes intelectuais conservadores, como o nosso José Guilherme Merquior, dispenderam em impugnar ideias esquerdistas. Ser bem-sucedido nesse esforço não significa nada, quando as idéias não valem por si e são só a camuflagem de alguma operação mais discreta.
Se um vizinho safado vai jogar baralho na sua casa com a intenção de ficar passando a mão na perna da sua esposa por baixo da mesa, não é vantagem nenhuma você vencê-lo no jogo. O que importa é virar a mesa e encher o sujeito de porrada.
Escrito por Olavo de Carvalho. Visite o website do autor, clique aqui.
Publicado originalmente no website Mídia Sem Máscara, em 21 de dezembro de 2006.
Nota:
- Roberto Fernández, Multiculturalismo intelectual, Revista USP, número 42 (junho-agosto 1999), pp. 84-95.