“Deus deve amar os homens medíocres. Fez vários deles.”,
Abraham Lincoln (1809 – 1865): 16° Presidente dos Estados Unidos da América.
É de Adam Smith uma das sentenças mais cruéis que conheço sobre a natureza dos homens, mas nem por isso falsa: “Tudo para nós mesmos e nada para os demais perece ter sido, sempre e em qualquer lugar, a máxima vil dos seres humanos”. Algum tempo depois, em sintonia com o pensamento do grande mestre escocês, James Madison cunhou uma das frases símbolo da revolução norte-americana: “Se os homens fossem anjos, não precisaríamos de governos”. Por outro lado, prossegue Madison, “se os anjos governassem os homens, nenhum controle, externo ou interno, sobre o governo seria necessário”.
Diversos filósofos e políticos já foram confrontados por este difícil dilema: os homens, sendo o que são, necessitam de um governo, uma força maior e mais poderosa que qualquer indivíduo ou grupo de indivíduos, capaz de evitar o que Hobbes chamava de “estado natural de guerra”. Por outro lado, os homens também precisam de proteção contra os abusos desta mesma força e, especialmente, contra a sua inerente propensão à corrupção e ao despotismo.
O conflito social fundamental, portanto, não é – e nunca foi – a famigerada luta de classes descrita por Marx, mas o combate quase sempre desigual entre os indivíduos e o poder político, personificado pelo governo. Os ingleses propuseram amenizar esse inevitável confronto de forças assimétricas, ao menos parcialmente, através da instituição do parlamento, destinado a tentar controlar os excessos e abusos do poder real. Uma outra receita mais ou menos eficaz foi a introdução das chamadas normas constitucionais, cujo principal objetivo era deixar claros os limites de ação dos governos e dar garantias de que certos direitos individuais irrefutáveis seriam respeitados.
De todas, a Constituição americana foi, de longe, a que produziu os melhores efeitos e, não por acaso, é a mais antiga. Calcada na doutrina jusnaturalista de John Locke, ela consagrou a ideia dos direitos naturais do ser humano e colocou, de forma clara e precisa, controles e limitações aos poderes do governo. Por incrível que possa parecer aos olhos de alguns, a preocupação maior dos fundadores do Estado americano não era com a democracia, “a pior forma de governo, exceto todas as outras”, nas palavras de Churchil, mas com a manutenção dos direitos naturais do homem, para eles “auto evidentes” e “outorgados pelo próprio Criador”.
É do magistral Frédéric Bastiat a mais clara e concisa definição que conheço a respeito da primazia da lei natural sobre a lei dos homens: “A vida, a liberdade e a propriedade não existem pelo simples fato de os homens terem feito leis. Ao contrário, foi pelo fato de a vida, a liberdade e a propriedade existirem antes que os homens foram levados a fazer leis”. Portanto, temos direitos que antecedem a qualquer governo sobre a terra; direitos que não podem ser afastados ou contidos pelas leis dos homens; direitos inerentes à nossa própria condição de seres humanos.
Os fundadores da república norte-americana sabiam que aqueles direitos são intrínsecos à nossa própria existência, não por mera concessão do Estado ou do poder político. Para eles, o governo só fazia sentido se o objetivo fosse evitar que um cidadão violasse os direitos naturais inalienáveis de outro. Sabiam que o poder soberano era – será sempre! – do indivíduo, e o governo não é mais que um agente em defesa dos seus direitos.
Nos regimes meramente democráticos, nada impede que a maioria estabeleça ou modifique as regras a seu bel prazer. Neles, a lei dos homens é qualquer coisa que a vontade da maioria determine que seja. Se a lei natural inexiste, quaisquer direitos passam a ter conotação de privilégios, de permissões que são outorgadas e podem ser retiradas a qualquer tempo pelo arbítrio da maioria e de seus representantes eleitos. Não é difícil enxergar que, no contexto político, quando esse poder ilimitado é dado ao grupo majoritário, o resultado tende a ser catastrófico. Na Grécia antiga, por exemplo, o voto da maioria sentenciou à morte o excelso Sócrates, não por um crime hediondo, mas por conta de seus “ensinamentos controversos”. Há apenas oitenta e poucos anos, também o sufrágio da maioria elegeu, na Alemanha, o Partido Nazista e seu líder de triste memória, Adolf Hitler. Recentemente, tanto Hugo Chávez, na Venezuela, quanto Robert Mugabe, no Zimbabwe, foram alçados ao poder pelo voto popular. Os resultados todos nós conhecemos bem.
O fato é que, numa democracia “stricto sensu”, nada impede que 51% dos votantes decidam escravizar os 49% restantes. Se aos representantes da maioria é dado o poder de decidir sobre todas as coisas; se isto que os liberais chamam de direitos naturais não forem mantidos acima de qualquer lei criada pela vontade dos homens, tudo é possível e o poder não encontrará nenhuma barreira em sua marcha rumo à tirania total.
A grande verdade é que a situação de um indivíduo feito escravo ou espoliado pelo voto da maioria não é em nada diferente da de outro, subjugado e explorado pelo despotismo absolutista. Não é por acaso, portanto, que os socialistas contemporâneos atribuam dotes divinos a esta vaga quimera que chamam “democracia”, como se nela estivesse a fonte de toda justiça e sabedoria coletivas. O endeusamento do poder das maiorias e o uso do sufrágio universal como justificação para qualquer ato, por mais arbitrário que seja, foi a forma encontrada pelos modernos marxistas para impor e justificar as suas ideias despóticas sem resistência.
Com efeito, o foco no chamado “direito positivo” e a sublimação do poder da maioria pelo voto – que não é outra coisa senão a transformação da democracia num fim em si mesma – têm proporcionado aos próceres do esquerdismo um poderoso argumento para justificar os mais grotescos espetáculos de tirania, onde as mais comezinhas regras universais de justiça são postas de lado, em favor de abstrações, como “justiça social”, “interesses do povo” ou “bem comum”.
Não devemos nos iludir: uma nação é livre não porque elege os seus representantes pelo voto direto, mas porque os direitos naturais universais dos seus indivíduos – vida, liberdade e propriedade – estão todos devidamente protegidos e prevalecem sobre quaisquer leis humanas. A democracia não é um valor social ou moral inquestionável, um fim a ser alcançado, como pretendem alguns. Ao contrário, ela é somente um meio, o menos pior dos sistemas de governo até hoje experimentados.
Escrito por João Luiz Mauad.
Publicado originalmente no website Mídia Sem Máscara, em 14 de agosto de 2007.
Nota do editor:
A imagem associada a esta postagem ilustra recorte da obra (tela/mural): “Manifestación”, criada pelo pintor argentino Antonio Berni (1905 – 1981) em 1934.