Santo André, 1948

Obra: "Santo André eu te amo" (1983), por Jean Louis P. Blanc.

As boas intenções têm sido a ruína do mundo. As únicas pessoas que
realizaram qualquer coisa foram as que não tiveram intenção alguma.
Oscar Wilde (1854 – 1900)



Só quem tem mais de setenta anos e, assim como eu, nasceu e cresceu na cidade de Santo André, poderá talvez lembrar-se do personagem que pretendo reviver neste texto.

Antes, porém, quero situar o leitor: nasci na Avenida Portugal, 423, em um bairro de casas dos funcionários da Tecelagem Kowarick [foto], onde meu pai trabalhou por mais de quarenta anos. Isso foi em 1948. Em frente à minha casa ficava uma mansão que tomava o quarteirão inteiro, na qual morava, à época, uma família francesa: o pai, Dr. Bosch, diretor da empresa Rhodia, junto da mulher e três filhos, entre eles duas meninas — Monique e Anny — que se tornaram muito amigas de minhas irmãs e frequentavam minha casa todos os dias. Elas já eram adolescentes, e eu devia ter uns sete anos. O curioso sobre eles foi o motivo que precipitou o retorno da família à França, que se deu quando uma das filhas, a Monique, começou a namorar o Zezinho Taxista, que fazia ponto em frente ao Hospital Beneficência Portuguesa. A coisa ficou séria e, então, o Dr. Bosch achou por bem dar um fim em tudo, voltando para a Europa. Mantenho contato Tecelagem Kowarick, em Santo André (SP).com elas até hoje, por meio das redes sociais. Depois, veio morar na mansão uma família italiana; não me lembro do nome, mas o patriarca era vice-cônsul da Itália e dono da Tecelagem Santo André.

Enfim, no terceiro quarteirão, subindo à direita, havia um grande terreno cercado de arames, com pinheiros por toda a volta. Lembro-me bem, porque em frente ao tal terreno ficava o campo do nosso time, o Botafogo (que, por estar bem debaixo dos fios de alta tensão, era chamado de “Botafogo da Light”), onde fui o ponta-direita titular por toda a juventude. Era ali, no tal terreno, que vivia nosso personagem.

Entre galpões abandonados, havia uma casinha de tijolos onde ele morava com a família, em troca de cuidar de toda a área. Tinha um monte de filhos, os quais eram todos meus amigos, e eu passava mais tempo naquele terreno, com eles, do que em minha casa. Era gente muito pobre. Meu pai, me recordo, foi um dos primeiros da Avenida Portugal a comprar uma televisão (uma Invictus novinha!), e eu convidava os meninos do terreno para ir em casa assistir, com a permissão de meu pai, “desde que ficassem quietinhos”. Assim era. Ficavam sentados debaixo da mesa da cozinha, vendo o indiozinho da Tupi, o único canal. Batiam palmas, felizes, dizendo: “Hoje tem tevisão, hoje tem tevisão!”. Inesquecível, aquela alegria. Meu pai só não gostava quando a janta na casinha deles havia sido peixe: os moleques vinham com um cheiro de lascar…

Mas quero mesmo é falar do pai de meus amigos, um mulato de altura mediana, alegre, humilde, e o ser humano mais bondoso que conheci. Sem vício algum, jamais o vi a colocar um único gole de álcool na boca (ao contrário de sua esposa, que entornava o caldo). Seu nome: Dito Pinhãozeiro. Ganhara o apelido porque além de tomar conta do terreno, Seu Dito tinha mais uma fonte de renda: em seu quintal havia um fogão improvisado, que fizera com alguns tijolos, onde colocava uma lata de óleo de 20 litros e enchia com pinhões que cozinhavam a tarde inteira. No fim da tarde, a lata ia para dentro de uma carriola, e ele descia a Portugal até seu ponto fixo, em frente ao Teatro Carlos Gomes . Os pinhões vinham num canudo feito de folhas de jornal, duas conchas cheias. O preço não me lembro. “Olha o pinhão, olha o pinhão!”… ainda posso ver, sem me esforçar, aquela figura simplória de calças pretas, paletó marrom e chapéu de feltro. Tanta gente esperava o Dito passar… aquele pinhão tinha um gosto diferente, gosto de um tempo diferente, um tempo que não volta.

Não sei como Dito Pinhãozeiro morreu, nem para onde foram seus filhos, meus eternos amigos da casinha de tijolos do terreno em frente ao campo. Escrevo este texto somente para que sua memória, a memória de um simples homem bom, não desapareça sem registro algum.


Douglas Alfini, um andreense.
O autor é pai do escritor Douglas Alfini Jr.


Nota da editoria:

Imagem da capa: “Santo André eu te amo” (1983), por por Jean Louis P. Blanc.


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