Nada seria mais natural do que encontrar, nos principais movimentos ideológicos contemporâneos, uma vez que mantêm entre si uma unidade de objetivos finais, uma afinidade também em seus esforços de autojustificação científica. Entre seus argumentos centrais há um, particularmente, que se repete às náuseas e que é utilizado como verdadeira carta coringa sempre que necessário, como se sua simples menção bastasse já para dissipar quaisquer dúvidas e prevenir quaisquer questionamentos futuros: o argumento da “convenção” ou “construção social”.
Trata-se de um argumento essencialmente relativístico, cuja força reside justamente aí: de um só golpe, ele opera um rebaixamento ontológico de uma variedade de elementos que o homem sempre inteligiu sem nenhuma dificuldade e em sua dimensão correta, fazendo-os descer ao nível das meras preferências aleatórias. Por exemplo, a dualidade entre o masculino e o feminino, distinção que começa na ordem do espírito e se estende até sua correspondente expressão na esfera natural, é esvaziada de suas implicações metafísicas, biológicas e lógicas, e arrastada para o campo das meras representações e papéis sociais, onde não há mais objetividade, mas apenas “construção”.
O fundo desse pensamento tem sua origem em teorias sociológicas e existencialistas modernas1 que, como de costume, operam um reducionismo absoluto, buscando explicar o mundo real exclusivamente por meio de certos fenômenos selecionados, em vez de investigar estes em vista daquele. No processo, esses fenômenos são alçados à estatura de “causa não causada” e tomados como medida única de todas as coisas, como se eles próprios não fossem, por sua vez, originados de uma multidão de outros fatores (o que, como veremos adiante, constitui já uma contradição em relação ao próprio argumento). Assim chegamos ao ponto em que tudo é concebido, para o bem ou para o mal, como a mera expressão de um convencionalismo coletivo qualquer, não tendo em si mesmo nenhum valor objetivo e podendo, portanto, ser reorganizado em quaisquer novas formas igualmente convencionadas.
Quanto a esse estado de coisas, porém, cabem algumas observações. De modo a que possamos visualizar melhor esses artifícios em ação, tomemos como exemplo sua aplicação nos discursos correntemente oferecidos pelas discussões sobre gênero.
- O argumento da convenção ou construção social vem, naturalmente, em socorro dos defensores das “disforias”, enquanto ataca a “rígida mentalidade tradicional” daqueles que relacionam, em sua essência, a masculinidade aos homens e a feminilidade às mulheres. Já em 1949, no livro O segundo sexo, Simone de Beauvoir postulava as questões de gênero como construções sociais. Curiosamente, no entanto, muitas das chamadas “pessoas trans” buscam as suas devidas “cirurgias de redesignação sexual”, de modo, segundo elas, a melhor adequar (ou, poderíamos dizer, a corrigir) a correspondência entre a expressão sexual biológica e o gênero. Ora, mas não era justamente o ver alguma correspondência concreta entre sexo e gênero aquilo que se combatia na mentalidade “arcaica”, em favor do relativismo da construção social? Sim, porque seja lá entre qual sexo e qual gênero, em quaisquer combinações possíveis, do fato de ser necessário (ou mesmo possível) “redesignar” esta relação só se pode concluir pela objetividade da mesma, uma vez que, do contrário, não haveria sequer o que redesignar. Objetar que a redesignação visaria tão somente acompanhar o que a convenção social atual determina como adequado, no que tange à relação de certos gêneros com certas expressões sexuais, seria incorrer em uma contradição de base, pois a própria ideia da convenção social estaria agora sendo investida de um caráter de objetividade e autoridade, enquanto a mentalidade tradicional era criticada exatamente por ver esse mesmo caráter no que seria apenas um cenário socialmente construído e, portanto, subjetivo, relativo e sem qualquer obrigação de ser seguido. Ademais, essa objeção, ainda que sem todas essas considerações, estaria afirmando a simples troca de certo padrão socialmente construído por outro, o que obviamente não resolveria a questão e, mais uma vez, anularia a própria razão de ser da tal “redesignação”.
- Mas isso nos leva a uma nova questão: se as relações dos gêneros com suas expressões biológicas são apenas construções sociais, de onde o indivíduo tira o critério para julgar a situação e concluir que está “invertido”? Certamente não pode ser dos seus sentimentos divergentes em relação às convenções em que se encontra “aprisionado”, por mais “heteropatriarcais” que sejam, pois isto seria, novamente, assim como no item anterior, dar a elas a objetividade que lhes impugna a própria definição. Uma convenção social, um padrão de comportamento socialmente construído, não pode ser critério de avaliação de nada, uma vez que um critério, justamente para sê-lo, exige um elemento objetivo e estável, constante, que possa ser utilizado como referência.
- A “convenção social tradicional”, criticada pelos teóricos contemporâneos, sempre resumiu-se na afirmação de correspondência entre dois gêneros, masculino e feminino, e duas expressões sexuais, a do homem e a da mulher, respectivamente. Ainda em 2016, a Comissão dos Direitos Humanos de Nova York já havia reconhecido oficialmente 31 gêneros diferentes2 e, hoje, algumas instituições já falam em 52. Mas essas contas só são possíveis porque estão baseadas em um dilúvio de aberrantes erros de categoria. Para ficar no mesmo exemplo, a lista das trinta e uma “identidades de gênero” apontadas pela CDH de Nova York inclui homem e mulher, mas identifica tambémos cross-dressers, drag-queens e andrógenos(as), para citar apenas alguns: ora, ser um homem ou uma mulher e assim considerar-se é algo completamente diferente de parecer-se ou vestir-se como tal; esses elementos não estão de maneira alguma na mesma categoria, ou, poderíamos dizer — com o perdão da ironia sádica —, não são objetos de um mesmo gênero. Apenas através de tão grotescos erros lógicos é possível estender o número dos gêneros para além dos dois de sempre, pois toda e qualquer tentativa de se conceber um gênero alternativo só poderá recair em variadas formas hipotéticas de “mistura” entre os dois originais, ou de “neutralidade” em relação a eles, de modo que o masculino e o feminino serão sempre, inescapavelmente, a referência e o fundamento de quaisquer outras hipóteses a este respeito, pelo simples fato de que é impossível à mente humana conceber um gênero para além desses dois, assim como lhe é impossível conceber uma nota musical que já não esteja compreendida na escala, ou um número formado por algarismos que já não estejam compreendidos entre 0 e 9. Em outras palavras: o masculino e o feminino, assim como a variedade limitada das notas musicais e dos algarismos, são eles próprios uma expressão de parte da estrutura do real, fora da qual não há raciocínio possível.3
- Por fim, mesmo sem todas essas considerações específicas, o argumento da construção social resplandece em toda sua inocuidade se o consideramos também desde um ponto de vista mais geral. Isso porque mesmo que aceitássemos a tese adversária, restaria ainda que explicassem por que uma certa convenção acaba por tomar determinada forma e não outra. Se ela é completamente subjetiva, não poderia jamais estratificar-se e ter erguidas sobre si sociedades inteiras, caso em que não haveria razão para combatê-la; se, porém, possui alguma objetividade e está firmada em razões concretas de ser, em primeiro lugar já não se trata mais de uma “convenção” ou “construção” subjetiva; em segundo lugar, ela própria não poderia ser oferecida como argumento suficiente à questão, pois não constituiria o nível último da investigação, sendo necessário agora perguntar-se sobre essas suas razões de ser, suas origens. O argumento da construção social, portanto, ainda que o considerássemos correto e coerente em si mesmo, só poderia, quando muito, explicar um como, não um por quê; um meio, não um fim.
Seja como for, todos os intelectuais responsáveis por conceber e disseminar essas pseudoteorias sabem perfeitamente o quão equivocadas elas estão, mas o fato é que nenhum deles foi jamais recrutado e financiado para que desse conta de tais ou quais problemas filosóficos, mas apenas com a missão de elaborar certos discursos pretensamente científicos a fim de dar ares de justificação racional para certas ações políticas de seus patrões. Eis a “alma do negócio”: a coerência não foi jamais um elemento essencial; ela não precisa ser perseguida, pois não é necessária — após ter sido apresentada à visão de uma vida em sociedade sem quaisquer exigências morais ou responsabilidades de qualquer ordem, a multidão ensandecida contenta-se com qualquer discurso que dê a tudo isso uma aparência de normalidade, para que possa continuar mentindo para si mesma e para os outros sem ser importunada, como um bandido que carregasse consigo um distintivo policial falso, apenas para seguir cometendo seus crimes mais às sombras da lei.
No mundo real, as “construções sociais” são a carteirada daqueles que sonham com um mundo que não existe e vivem no mundo com que sonham.
Por Daniel Marcondes.
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Notas:
- O conceito de construção social tal como hoje o conhecemos foi introduzido pelo livro A construção social da realidade, de Peter Berger e Thomas Luckmann, publicado em 1966. A obra, considerada pelos sociólogos contemporâneos uma das mais importantes de sua área, é um marco da maturação e fusão de diversas ideias e propostas teóricas que já fervilhavam nesse sentido desde muitas décadas.
- Os 31 gêneros reconhecidos são: bi-gendered, cross-dresser, drag-king, drag-queen, femme queen, female-to-male, FTM, gender bender, genderqueer, male-to-female, MTF, non-op, Hijra, pangender, transsexual, trans person, woman, man, butch, two-spirit, trans, agender, third sex, gender fluid, non-binary transgender, androgyne, gender-gifted, gender bender, femme, person of transgender experience e androgynous (cf.: https://dailycaller.com/2016/05/24/new-york-city-lets-you-choose-from-31-different-gender-identities/). Desde 2021, a cidade de Nova York também oferece a opção do “gênero neutro X” em certidões de nascimento e carteiras de motorista.
- Em 2014, a Suprema Corte da Índia reconheceu oficialmente os hijra como constituindo um “terceiro gênero”. A hijra é uma seita hinduísta composta de homens que se vestem como mulheres após serem castrados, por vezes envolvida em escândalos relacionados à castração forçada e ao tráfico sexual de crianças. Patente ilustração do que foi comentado acima, o que vemos, ao olhar um hijra, é, obviamente, apenas um homem vestido com roupas femininas, e não um “terceiro gênero”. Outro grupo habitualmente incluído nessa categoria é o dos fa’afafine samoanos, homens que, geralmente pela ausência de filhas na família, são criados e educados inteiramente como garotas, para que cuidem dos afazeres domésticos e demais funções que, na cultura samoana, competem exclusivamente às mulheres. Tratando-se de uma imposição dos pais e sendo um ato completamente legalizado, os fa’afafine seguem em seu estado “feminino” mesmo depois de adultos, vestidos como mulheres e emulando-as nos mínimos detalhes. Mais uma vez, o que se vê aqui não é de modo algum um “terceiro gênero”, mas tão somente homens em trajes femininos. Neste caso, a ironia é ainda mais exacerbada, uma vez que o próprio nome fa’afafine significa “como mulher”, “à maneira de uma mulher”, indicando não haver, por parte daquela cultura, qualquer confusão sobre a natureza dessas pessoas.
Notas da editoria:
Imagem de capa “A Reprodução Interdita” (1937), por René Magritte (1898 – 1967).