“O passado não é o que passou. É o que ficou do que passou.”,
Alceu Amoroso Lima (1893 – 1983).
Quando o regime de auto-policiamento da moralidade se quebra, o Estado deve assumir o comando da bagunça e resgatar as vítimas – tanto as vítimas passivas, como os órfãos de relações casuais, como as vítimas voluntárias que escolheram a dependência do Estado como a opção mais fácil.
Diante dessa situação, muitos conservadores tendem a culpar o establishment liberal, que tem dedicado muita energia para minar as normas morais e instituições. Mas, embora as idéias tenham conseqüências, as idéias são também conseqüências de outras coisas. A desmoralização da sociedade é o efeito de muitas causas e apenas algumas pertencem ao campo das idéias. Paz prolongada, abundância sem precedentes, mobilidade social, métodos contraceptivos, drogas e estimulantes – tudo isso tem um efeito previsível no enfraquecimento dos laços da sociedade. E a essas famosas tentações devemos acrescentar os efeitos da tecnologia recente: os cérebros humanos agora estão saturados por mensagens efêmeras, enquanto as relações humanas foram transferidas do mundo real para o virtual. O amor sexual é conhecido por alterar seu posicionamento e estilo, mas entramos em uma nova situação em que grande parte deste amor ocorre na esfera dos sinais eletrônicos. Nós não devemos nos surpreender quando esse amor virtual, muitas vezes, se parecer com ódio. O espaço virtual é mercurial, demoníaco, um espaço de transformações que não podemos controlar. Ao viver com os olhos fixos nesse espaço, você adquire uma mentalidade que não tem precedente real nos anais da humanidade. Os jovens, portanto, acham difícil visualizar o futuro como algo pelo que são responsáveis, e que os obriga a fazer sacrifícios em seu nome.
Os problemas que enfrentamos não podem ser resolvidos pela filosofia, uma vez que eles são mais profundos do que pensamos. Mesmo que derrotemos os liberais num debate, refutando satisfatoriamente os argumentos labirínticos de Rawls e os desafios espertinhos de Dworkin e companhia, não conseguimos mudar o que é mais importante para nós. Sem dúvida, era perfeitamente razoável para os conservadores, na época do New Deal, alertar contra o crescimento do poder do Estado e a erosão da responsabilidade individual. Olhando para trás, podemos sentir a força de seus argumentos e reconhecer que há muita verdade no que diziam. Mas também temos de reconhecer que os argumentos conservadores não fizeram diferença, assim como os argumentos de Hayek na Grã-Bretanha pós-guerra – tão manifestamente superiores em poder e alcance aos argumentos de figuras insignificantes como Harold Laski, que despacharam Hayek para a América – não fizeram nenhuma diferença. O poder do Estado continuou a crescer.
E assim é a situação hoje. O Estado aumenta e a responsabilidade individual diminui, independentemente se liberais, socialistas ou conservadores estão no governo; independentemente do legado social e político e independentemente de qual facção intelectual parece estar ganhando a batalha de idéias.
Além disso, devemos reconhecer que este processo não é estritamente um fenômeno dos países desenvolvidos. A cultura de dependência surgiu simultaneamente na Europa e na América, e a família tradicional se desintegrou por todo o mundo ocidental. O “declínio do Ocidente” pode não ser o inevitável processo descrito por Spengler em um famoso livro de 1918 de mesmo título. Mas certamente não é um processo que pode ser ligado a qualquer nação em particular ou a qualquer forma de política nacional. Também não é um processo restrito ao campo das idéias ou facilmente desviado pela afirmação dos valores tradicionais contra a alternativa liberal.
Além disso, a expansão do Estado em todas as áreas de nossas vidas e a contração constante da esfera da responsabilidade pessoal têm produzido uma nova ordem das coisas – que torna muito difícil para nós, conservadores nos comunicarmos com aqueles que esperamos influenciar. Assim, muitos dos nossos argumentos e insights dependem da velha ordem da virtude, dos velhos pressupostos morais, e da velha concepção do ser humano como um agente livre e responsável. Contudo, as coisas velhas passaram, e nós pareceremos tolos se não reconhecermos o fato. Não é apenas que a sociedade mudou, o ser humano mudou com ela. Nós pertencemos à mesma espécie de Homero, Aquino e Mozart, mas também somos produtos da interação social e mudamos a nossa natureza de acordo com o contexto em que nós crescemos. As nossas sociedades são agora radicalmente diferente daquelas observadas por Burke, Maistre, Tocqueville, e Hegel, e os pensamentos desses grandes homens, independentemente do seu valor intelectual, não nos permitirá construir uma política conservadora adequada às nossas necessidades atuais.
Temos que aceitar que não é mais possível governar os jovens pelos métodos usados para governar e influenciar os jovens da minha geração. Exortação, exemplo, as histórias de santos e heróis, a vida de humildade, sacrifício, penitência e oração – todas essas influências morais têm pouca ou nenhuma importância para eles. E, embora de vez em quando eles se deparem com obstáculos, e talvez experimentem o amor verdadeiro, o ciúme real, verdadeiro medo e tristeza real, essas emoções não estão disponíveis para eles nas doses regulares e circunstâncias previsíveis que estavam disponíveis para nós.
ENTÃO O QUE OS CONSERVADORES DEVIAM FAZER? Este é o último dos meus artigos regulares para The American Spectator, então deixe-me concluir esse período feliz da minha vida com algumas observações para uso futuro. Ao que me parece, o nosso trabalho consiste no que Platão chamou anamnese – a derrota do esquecimento. Não podemos pedir aos jovens que vivam como vivíamos ou valorizem o que valorizávamos. Mas podemos encorajá-los a ver do ponto de vista de como vivemos, e reconhecer que a liberdade sem responsabilidade é, no final, um ativo vazio. Podemos contar-lhes histórias das antigas virtudes e ampliar sua simpatia com um mundo em que o sofrimento e sacrifício não eram as coisas puramente negativas como são representados pela cultura do consumo, mas uma parte imóvel de qualquer felicidade duradoura. Nossa tarefa, em outras palavras, é agora menos política do que cultural – uma educação da simpatia, que exige de nós virtudes (como a imaginação, a criatividade, e um respeito pela alta cultura) que têm um lugar diminuto no mundo da política.
É claro que devemos fazer o nosso melhor para controlar o crescimento do Estado e tornar mais difícil a dependência sob sua expansão constante. Devemos procurar, por quais vias remanescentes, reconstruir o nosso sistema de ensino com conhecimento em vez de “auto-estima” como produto. Há uma centena de pequenas formas que podemos ajudar a próxima geração a não cair completamente na armadilha que está sendo preparada. Mas não há nenhuma maneira, temo eu, de destruir completamente essa armadilha. Ela é construída pela engenhosidade humana e fisgada com nossos próprios desejos.
Escrito por Roger Scruton (1944 – 2020).
Escrito para o website The American Spectator, em julho de 2012.
Titulo original: Waving, Not Drowning. Tradução de Augusto Peretti Barrozo.
Publicado inicialmente no website Mídia Sem Máscara, em 10 de outubro de 2012.