“Não é menos verdade que, a vida imita a arte muito mais do que a arte imita a vida.”,
Oscar Wilde: influente escritor, poeta e dramaturgo irlandês.
Em A Decadência da Mentira, ensaio publicado por Oscar Wilde em 1891, encontramos uma valiosa reflexão acerca da importância da arte e sua relação com a vida humana. Em certo ponto do diálogo desenvolvido entre os dois protagonistas da obra, afirma-se que, diferentemente do que poderíamos supor, é a arte que serve de inspiração para a vida; e não o contrário. Alguns anos mais tarde, o dramaturgo austríaco Hugo Von Hofmannsthal reforçou essa percepção ao explicar que “nada está no ambiente político de um país que não esteja primeiro em sua literatura”. Ao longo dos próximos parágrafos, a relação entre a arte e as possibilidades da vida humana, perspectiva compartilhada por ambos os autores citados, será brevemente explorada.
Entre os dramaturgos da Antiguidade grega, Ésquilo, Eurípedes e Sófocles foram os mais destacados autores de tragédias. O conteúdo central das narrativas apresentadas por esse gênero literário e teatral pode ser brevemente definido como a impotência humana diante de forças superiores. Basicamente, as tragédias mostram a inconsistência da condição humana e a debilidade das vontades do homem, levando o público a reconhecer que suas vidas não são dirigidas apenas por elementos humanamente inteligíveis e controláveis. O contato com as tragédias, fundamental na educação dos gregos, permitia que todos desenvolvessem a consciência de estarem sujeitos às leis do cosmos, superiores às determinações humanas.
Ao longo dos séculos, a familiaridade com obras como “Prometeu Acorrentado”, “Medeia” e “Antígona” era parte indispensável na formação da classe intelectual no Ocidente. Dessa forma, os enredos das tragédias gregas estavam especialmente presentes nas mentes dos formadores de opinião. Nesse sentido, os trabalhos produzidos por esses intelectuais refletiam, em alguma medida, a noção de que o homem se encontra limitado por elementos por ele ingovernáveis. Na atualidade, infelizmente, as obras antes citadas são de conhecimento de um restrito grupo cuja influência é nula na modelagem do imaginário das classes falantes. Consequentemente, a capacidade de aceitar as limitações do homem e a habilidade de reconhecer a existência de poderes superiores às possibilidades humanas de controlá-los perdeu-se de maneira evidente.
A origem remota do citado fenômeno pode ser encontrada no século XV, a partir da cosmovisão elaborada na Modernidade. Nela, o ser humano passou a ocupar uma posição central, na qual tudo se explica a partir dele. Antropologicamente, os modernos acreditam ser o homem a “medida de todas as coisas.” A partir do período histórico em questão, a ideia de tragédia veio sendo, paulatinamente, condenada ao esquecimento. Desde então, espalhou-se vigorosamente pela sociedade ocidental a inversão ardilosa de que “Deus seria uma criação humana”; uma espécie de personagem de ficção. Gerou-se, portanto, uma separação radical entre o visível e o invisível, o sobrenatural e o natural. Consequentemente, teve início um marcado processo de dessacralização da humanidade. A partir desse ponto de vista, na atualidade não ousamos supor que algo possa ser explicado por elementos superiores, dado que ignoramos a existência do que não está ao alcance imediato de nossos sentidos. Nas palavras de G.K. Chesterton, em sua obra Ortodoxia: “O homem estava destinado a duvidar dele mesmo e a acreditar na verdade. No mundo moderno, ocorre exatamente o contrário.” Sendo assim, tudo se resume às decorrências da ação humana. Dessa forma, quando resultados desejados não são atingidos, estamos diante de um culpado que deve ser rapidamente encontrado e punido. Hoje em dia, todos estão convencidos de que os problemas humanos foram criados pelo homem e apenas por ele serão solucionados.
Resgatando referências da Antiga Grécia, mais especificamente na obra do já citado Ésquilo, pode-se chamar esta concepção do mundo de Prometeanismo: a pretensão humana de ter a capacidade de superar todas as dificuldades; a atitude da criatura que equivocamente acredita ser seu próprio criador. Apesar de a realidade ilustrar exaustivamente a existência de problemas ininteligíveis e insolúveis atrelados à condição humana e aos insondáveis mistérios do universo, o Prometeanismo entende que não existem “tragédias”, mas apenas “dramas” cujas origens se encontram nas ações ou omissões de pessoas identificáveis. Assim, a vida humana tem se transformado em uma interminável e nociva “caça às bruxas”.
Esta simplificação que reduz o homem à sua natureza material promoveu em nosso imaginário a superação do gênero teatral da tragédia pelo drama. Neste, a culpabilidade humana sempre está por trás de tudo o que consideramos indesejável. O bem e o mal nunca vêm de cima, mas são sempre o resultado de ações humanas. Isso representou uma grande mudança em nossa visão de mundo, com nítidos reflexos em nossas vidas. Atualmente, estamos sempre à procura de um culpado. Nesse sentido, uma das piores consequências da negação da transcendência humana é a atual tendência de ampliar a criminalização de condutas.
No âmbito artístico, Iago e Lady Macbeth, personagens imortalizadas nas obras Otelo e Macbeth, são célebres exemplos da maldade humana cuja derrota promoveria a almejada e possível harmonia. Nesse sentido, o monumental legado de Shakespeare sinaliza, sob certo aspecto, o enfraquecimento da cosmovisão na qual o homem estava inserido como criatura. Sendo assim, se a origem de tudo o que é prejudicial pode ser identificada em alguma pessoa, a intervenção absoluta do estado em nossas vidas não seria apenas necessária, mas legítima. Desde então, uma vasta rede de instrumentos jurídicos de controle estatal vem crescendo avassaladoramente, sob o pretexto de evitar o sofrimento humano, dentro de um ambiente de formação intelectual marcado pela hegemonia de relatos dramáticos.
Lamentavelmente, aqueles cujos imaginários foram deformados por um ambiente cultural no qual a ideia de “tragédia” foi suprimida não aceitam a dura realidade de que eliminar todas as aflições é uma meta inalcançável para o homem. O referido processo contribuiu, significativamente, para o crescimento e disseminação de movimentos revolucionários que, especialmente ao longo dos últimos dois séculos, vêm banhando o mundo de sangue de vítimas inocentes. O aumento do caos e da destruição em proporções nunca antes vistas, resultado da busca incessante pela “construção de um mundo melhor”, refletiu de certa forma a influência da arte sobre a vida do homem dos séculos XVIII e XIX.
Observando o contexto antes citado, em meados do século XIX, Herman Melville produziu uma das maiores obras da literatura universal: Moby Dick, a Baleia. A leitura do livro apresenta ao leitor a personagem do Capitão Acab, exemplo de homem incapaz de sentir-se criatura e inconsciente de seus limites naturais. Sua luta contra a estrutura da realidade, simbolizada pela caçada ao cachalote branco, levou-o à sua própria destruição. A exuberante lição que Melville nos transmite em sua obra-prima exerceu grande influência em intelectuais como Albert Camus; que, a partir da ideia da inferioridade humana diante da realidade, desenvolveu sua filosofia existencialista. Nesse sentido, o Capitão Acab teria sido o arquétipo do “rebelado metafísico”, incapaz de vencer o destino.
Outra obra artística digna de destaque em relação à análise aqui proposta é a peça teatral Chantecler, que estreou em Paris em 1910. Escrita por Edmond Rostand, célebre dramaturgo consagrado à época pela adaptação da história de Cyrano de Bergerac aos palcos, a obra relata as aventuras do galo Chantecler, que acreditava ter a faculdade de fazer o sol nascer mediante seu cantar de todas as manhãs. Observa-se, analisando o enredo escrito por Rostand, a sensibilidade do artista ao transmitir, de forma irônica, o delírio onipotente de acreditar que a ação humana interfere significativamente na estrutura da realidade e a decepção decorrente de encarar a verdade. Em um exame retrospectivo, percebemos que o canto de Chantecler inutilmente anunciou a gravidade da perda do necessário senso de tragédia e da negação da imperiosa aceitação da inferioridade humana, que tantos danos trouxeram à Europa na primeira metade do século XX.
Em relação ao objetivo principal deste texto, com base na reflexão apresentada, propõe-se ao leitor o exercício de examinar a realidade não apenas a partir da inabarcável quantidade de informação hoje facilmente disponível, mas também sob a ótica da arte. Para isso, é essencial dedicar esforços para ampliar nossa cultura literária e teatral. Nesse sentido, recuperar o sentido da tragédia é fundamental para entender a condição humana. Sem essa compreensão, torna-se impossível perceber que ações humanas jamais atenderão seus propósitos manifestos de “transformar o mundo”. Uma vez superada essa ilusão, reconheceremos a fundamental importância de preservar e tentar aperfeiçoar o que foi duramente conquistado pelas gerações anteriores. Esse respeito a princípios e valores atemporais cuja conservação deve sobrepor-se a toda e qualquer alteração histórica poderá ser mais bem absorvido mediante o cultivo de nossas almas.
“It is none the less true that life imitates art far more than art imitates life.”
Oscar Wilde, The Decay of Lying.
“É a imagem do inacessível fantasma da vida; é aí que se encontra a chave para tudo.”
Herman Melville, Moby Dick.
“Sendo o objeto da literatura a própria condição humana, aquele que lê e a compreende se tornará não um especialista em análise literária, mas um conhecedor do ser humano.”
Tzvetan Todorov (Filósofo e Linguísta), A literatura em perigo.
Escrito por Silvio Fragoso.