“A rigor, a massa pode se definir, como fato psicológico, sem necessidade de esperar que apareçam os indivíduos em aglomeração. Diante de uma só pessoa podemos saber se é ou não. Massa é todo aquele que não se dá valor — bom ou mau — por motivos especiais, que se sente ‘como todo mundo’, e no entanto não se angustia, e gosta de se sentir idêntico aos demais. Imaginem um homem humildade que, ao tentar se valorizar por razões especiais — ao se perguntar se tem talento para isto ou para aquilo, se sobressai em alguma coisa —, nota não possuir nenhuma qualidade excepcional. Esse homem se sentirá medíocre e vulgar, mal dotado; mas não se sentirá ‘massa‘.”
Excerto da obra “A rebelião das massas”, de José Ortega y Gasset (1883 – 1955).
O interlocutor me advertiu: “Não gosto de política!”. Mais ou menos como se dissesse “prefiro hip hop“, “prefiro sorvete”, “prefiro namorar”. Eu também não gosto, respondi; aliás, detesto ter que viver sob o modelo institucional e a política que temos. Convenhamos, gostar disso, gostar mesmo, a ponto de o preferir a tantas delícias da vida é até sinal de mau gosto.
A política, porém, não perde sua importância em função de nossos agrados e desagrados. Ela vai influenciar nossa vida desde a qualidade da Educação até a sobrevivência na aposentadoria. Desde a concepção com ou sem aborto até a morte com ou sem direitos testamentários. É para lutar contra as deformidades que ensombrecem o céu da pátria que acordo todo dia de manhã, não raro após algumas horas de inquietude e insônia.
Nós temos, no Brasil, muitos maus hábitos. Um deles, com severos reflexos na política, é o de cair de pau nos problemas e fazer cafuné naquilo que os causa. Condenamos o que está errado e concedemos alvará de soltura para o que dá causa ao erro.
Está tudo errado. Mas não mexe. Morte às consequências! Longa vida às causas! “Vou desreformar tudo que foi reformado!” anuncia um ex-presidiário como plano de governo. Quando alguém sustenta a necessidade de promover mudanças para corrigir os erros, imediatamente as fisionomias exibem sinais de surpresa: de onde é que você tirou essa ideia? Nossas instituições são boas, dizem, só falta fazer com que elas funcionem.
Nessa crença tola, muitos fazem desavisadas genuflexões e reverências perante aberrações cotidianas cometidas pelos poderes de Estado. É nessa crença tola ou nessa desinformação, que tantos se deixam manipular por certos detentores de poder, indivíduos que jamais seriam convidados para jantar com a família de quem os conhecesse.
Em 2010, lancei meu livro “Pombas e Gaviões” com uma advertência de capa: “Os ingênuos estão na cadeia alimentar dos mal intencionados”. Os ingênuos apontam os problemas e não se preocupam de corrigir o que lhes dá causa. Ficam no sofá. São as pombas. Os mal intencionados conhecem as causas e se beneficiam da ingenuidade dos ingênuos. São os gaviões.
Pela ingenuidade de tantos e pela malícia de uns poucos, o ex-presidiário é candidato a presidente da República. Por isso, e só por isso, os gaviões do Senado e do STF vendem o privilégio da mútua tolerância com o rótulo dourado de “harmonia entre os poderes”, paga pelas pombas.
Por Percival Puggina.
Publicado no website do autor em 8 de junho de 2022.
Nota da editoria:
Imagem de capa: “The Trap Sprung” (1844), por William Sidney Mount (1807 – 1868).