“Qualquer trabalho que critique Freud corre o risco de provocar fortes ressentimentos.”
Richard Webster (1950 – 2011), escritor britânico.
A teoria psicanalítica foi criada de modo a que tudo, absolutamente tudo, esteja subjugado ao seu domínio. Se a arte, a música, a religião, a literatura, as mitologias, toda a cultura e toda expressão do espírito humano são interpretadas como manifestações últimas do inconsciente, e a psicanálise é o conjunto técnico-teórico capaz de compreender e lidar com este inconsciente, logo ela é, na prática, a “teoria de tudo”, o teto máximo para além do qual nada escapa. Pairando feito um deus sobre todos os aspectos da realidade, visto que os observa, critica e justifica desde fora, a psicanálise faz de seus praticantes e representantes os iluminados sacerdotes de uma seita suprema, detentora única das chaves para a compreensão de toda e qualquer coisa. É como se a humanidade precisasse ter esperado milhares e milhares de anos na mais pura escuridão, abandonada à própria selvageria, até que um messias — Sigmund Freud — fosse-lhe enviado, no século XIX, em posse da Luz que viria a libertá-la de sua primitividade e ignorância cega.
Mas esse messianismo não é uma exclusividade freudiana, ou de seus pupilos; antes, é o traço mais característico dos intelectuais modernos1 em geral. Rompendo com quaisquer resquícios de uma sã metafísica e, portanto, mutilando a intelecção e a experiência humanas, entre outras coisas, os autores que procedem dessa forma tornam suas teorias a máxima medida de si mesmas. Uma vez livres da necessidade inclusive lógica de reconhecer a precedência ontológica de toda uma dimensão do real e de uma infinidade de elementos sem os quais não seria possível nem mesmo que tivessem nascido, fica fácil oferecer, então, um conceito que a tudo abarque e explique, justamente de modo a preencher o vazio criado por essa expulsão metafísica que acabaram de operar. A partir daí, este conceito-base — que pode ser o inconsciente, a construção social, a opressão capitalista, as relações de poder, o que for — jamais é discutido, mas admitido previamente como dado primário da discussão, quer dizer, como o pano de fundo no qual esta se desenrola, e aí mesmo está o pulo do gato.
Muitas pessoas, mesmo reconhecendo o quão absurdas são todas essas teses, veem-se incapazes de debatê-las e refutá-las nem tanto por lhes faltar uma instrução específica a respeito, mas porque aceitam essas camisas de força conceituais e passam a discutir o assunto já dentro da lógica interna dos argumentos da respectiva teoria. Ora, essa lógica interna sempre estará correta em si mesma: se postulo previamente que o número 1 tenha o valor do 3, então 1 + 1 = 6 — e isso, do ponto de vista da lógica interna dos argumentos, estará correto; o que precisa ser acusado é o conceito-base, ou seja, a pressuposição equivocada de que 1 seja igual a 3; é este o erro que faz com que o resultado esteja em desacordo com a realidade, e não as operações per se realizadas no interior da conta. Da mesma forma, o grande truque de propostas como a psicanálise é operar um reducionismo absoluto através do qual tudo passa a ser visto como condicionado por determinados conceitos-base — determinados quadros mentais definidos de antemão e já dados como pressupostos — cujo domínio e compreensão apenas ela pode oferecer.
É a mais alta expressão do famoso decreto de Nietzsche, que anuncia, na “morte de Deus”, o abandono de toda uma tradição intelectual calcada nas leis eternas e na fonte transcendente da realidade em favor do imanentismo estéril e materialista do deus-ciência moderno. Cada novo Kant, cada novo Freud, cada novo Russell é apenas o mais recente profeta e ministro desse deus, o portador da Boa Nova e, ao mesmo tempo, único capaz de interpretá-la corretamente, num só golpe fonte e dispensador dos sacramentos espúrios da nova religião científica.
Por Daniel Marcondes.
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Nota:
- Refiro-me aos que se enquadram e representam o espírito científico e filosófico moderno no exercício de sua atividade intelectual. Há, evidentemente, homens de enorme talento e filósofos de primeira grandeza nascidos neste período histórico, mas cujas produções estão inteiramente enraizadas e assentadas na tradição antiga, pelo que não podem, de maneira alguma, ser chamados “intelectuais modernos”.
Notas da editoria:
Imagem de capa “The Israelites Dancing Aroung the Golden Calf” (1899), por Henri Paul Motte (1846 – 1922).