Excerto da sexta edição da obra: “Compêndio de Teologia Ascética e Mística”, escrita por:
Adolphe Tanquerey (1854 – 1932). Publicada em 1961 pela Livraria Apostulado da Imprensa.
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Para melhor explicarmos o que é a Teologia Ascética, exporemos sucessivamente: primeiro, os nomes principais que lhe têm sido dados; segundo, o seu lugar nas ciências teológicas; terceiro, as suas relações com o Dogma e a Moral; quarto, a distinção entre a Ascética e a Mística.
I. Seus diferentes nomes
A Teologia Ascética tem diversas denominações.
- Chamam-na a ciência dos santos, e com razão, pois que nos vem dos santos que a ensinaram e sobretudo a viveram, e é destinada a fazer santos, explicando-nos o que é a santidade e quais os meios de a alcançar.
- Outros dão-lhe o nome de ciência espiritual, porque forma espirituais, isto é, homens interiores, animados do espírito de Deus.
- Mas, como é uma ciência prática, apelidam-na também a arte da perfeição, por ter como fim conduzir as almas à perfeição cristã; ou ainda, a arte das artes, por não haver arte mais excelente que a de aperfeiçoar uma alma na mais nobre das vidas, a vida sobrenatural.
- Contudo, o nome que hoje mais frequentemente lhe é dado, é o de Teologia Ascética e Mística.
- A palavra Ascética vem do grego Ασκητική (exercício, esforço) e designa todo o exercício laborioso que se refira à educação física ou moral do homem. Ora a perfeição cristã supõe os esforços que São Paulo de bom grado compara aos exercícios de treino, a que se submetiam os lutadores, para assegurarem a vitória. Era pois, natural designar pelo nome de Ascese os esforços da alma cristã em luta para alcançar a perfeição.
- Assim o fizeram Clemente de Alexandria [1] e Orígenes [2] após eles, um grande número de Santos Padres. Não é, pois, de estranhar que se tenha dado o nome de Ascética à ciência que trata dos esforços necessários para adquirir a perfeição cristã.
- Sem embargo, durante longos séculos, o termo que prevaleceu, para designar esta ciência foi o de Teologia Mística Μυστική Θεολογία (misterioso, secreto, e sobretudo segredo religioso ), porque ela expunha os segredos da perfeição.
- Depois, houve uma época em que essas duas palavras foram empregadas no mesmo sentido; mas veio a prevalecer o uso de reservar o nome de Ascética à parte da ciência espiritual, que trata dos primeiros graus da perfeição até ao limiar da contemplação, e o nome de Mística à que se ocupa da contemplação e da via unitiva.
- Como quer que seja, resulta de todas estas noções que a ciência de que nos ocupamos é sem dúvida a ciência da perfeição cristã: eis o que nos vai permitir assinalar-lhe o lugar que lhe compete no plano geral da Teologia.
II. O seu lugar na Teologia
Ninguém melhor que Santo Tomás fez compreender a unidade orgânica que reina na ciência teológica. Divide a Suma em três partes: na primeira trata de Deus primeiro princípio, que estuda em si mesmo, na Unidade da sua Natureza e na Trindade das suas Pessoas: e nas obras que criou, conserva e governa pela sua providência. Na segunda ocupa-se de Deus último fim, para o qual devem tender os homens, orientando as suas ações para Ele, sob a direção da lei e o impulso da graça, praticando as virtudes teologais e morais e os deveres particulares de cada estado. A terceira mostra-nos o Verbo encarnado fazendo-se nossa via para chegarmos a Deus e instituindo os sacramentos para nos comunicar a graça, a fim de nos conduzir à vida eterna.
Neste plano, a Teologia Ascética e Mística está em conexão com a segunda parte da Suma, sem deixar de se apoiar nas outras duas.
Mais tarde, sem se deixar de respeitar a sua unidade orgânica, dividiu-se a Teologia em três partes: a Dogmática, a Moral e a Ascética.
- O Dogma ensina-nos o que é preciso crer sobre Deus, a vida divina, a comunicação que dela se dignou fazer às criaturas racionais e sobretudo ao homem, a perda desta vida pelo pecado original, a sua restauração pelo Verbo Encarnado, a sua ação na alma regenerada, a sua difusão pelos sacramentos, a sua consumação na glória.
- A Moral mostra-nos como devemos corresponder a este amor de Deus, cultivando a vida divina de que Ele se dignou outorgar-nos uma participação, como devemos evitar o pecado e praticar as virtudes e os deveres de estado que são de preceito.
- Mas, quando se quer aperfeiçoar esta vida, passar além do que é estrito mandamento, e progredir na prática das virtudes duma maneira metódica, é a Ascética que intervém, traçando-nos regras de perfeição.
III. Suas relações com o Dogma e a Moral
A Ascética é, pois, uma parte da Moral cristã, mas a parte mais nobre, aquela que tende a fazer de nós cristãos perfeitos. Se bem que se tornou um ramo especial da Teologia, conserva, não obstante, com o Dogma e a Moral relações íntimas.
- Tem o seu fundamento no Dogma. Quando quer expor a natureza da vida cristã, é ao Dogma que vai pedir luzes. Efetivamente, esta vida é uma participação da própria vida de Deus; é necessário, pois, remontar ao seio da Santíssima Trindade, para lá encontrar o princípio e a origem dessa vida, seguir a sua história maravilhosa, ver como, outorgada a nossos primeiros pais, foi perdida por sua culpa e restaurada por Cristo Redentor; qual é o seu organismo e o seu modo de operar em nossa alma, por que misteriosos canais nela se difunde e aumenta, como se transforma em visão beatífica no céu. Ora todas estas questões são tratadas na Teologia Dogmática. Nem se diga que se podem pressupor; se não se recordam numa síntese curta e viva, a Ascética parecerá sem base e exigir-se-ão às almas sacrifícios duríssimos, sem se poderem justificar por uma exposição de quanto Deus fez por nós. É, pois, bem verdade que o Dogma é, segundo a bela expressão do Cardeal Manning, a fonte da devoção.
- Apoia-se também na Moral e completa-a. Esta explica os preceitos que devemos praticar, para adquirir e conservar a vida divina. Ora a Ascética, que nos fornece os meios de a aperfeiçoar, supõe evidentemente o conhecimento e a prática dos mandamentos; seria perigosa ilusão descurar os preceitos sob colar de cultivar os conselhos e pretender praticar as mais altas virtudes, antes de saber resistir às tentações e evitar o pecado.
- Contudo a Ascética é indubitavelmente um ramo distinto da Teologia Dogmática e Moral. Com efeito, tem o seu objecto próprio: colige no ensino de Nosso Senhor, da Igreja e dos Santos tudo o que se refere à perfeição, natureza, obrigação, e meios da vida cristã, e coordena todos estes elementos, de sorte que deles se forme uma verdadeira ciência.
- Distingue-se do Dogma, que não nos propõe diretamente senão verdades que se devem crer, pois que, se é certo que se apoia nessas verdades, orienta-as para a prática, utilizando-as para nos fazer compreender, gostar e realizar a perfeição cristã.
- Distingue-se da Moral, porque, se bem que relembra os mandamentos de Deus e da Igreja, fundamento de toda a vida espiritual, propõe-nos os conselhos evangélicos, e, para cada virtude, um grau mais elevado que aquele que é estritamente obrigatório. É, pois, com toda a razão a ciência da perfeição cristã.
Daqui o seu duplo carácter de ciência um tempo especulativa e prática. Contém sem dúvida uma doutrina especulativa, visto que remonta ao Dogma, para explicar a natureza da vida cristã; mas é sobretudo prática, porque busca os meios que se devem tomar, para cultivar essa vida.
É até mesmo, nas mãos dum sábio diretor uma verdadeira arte, que consiste em aplicar com discernimento e dedicação os princípios gerais a cada alma em particular, a arte mais excelente e dificultosa de todas, ars artium regimen animarum. Os princípios e regras, que daremos, tenderão a formar bons diretores.
IV. Diferença entre a Ascética e Mistica
O que levamos dito aplica-se igualmente a uma e a outra.
- Para as distinguir, pode-se definir a Teologia Ascética: a parte da ciência espiritual que tem por objecto próprio a teoria e a prática da perfeição cristã desde os seus princípios até o limiar da contemplação infusa. Fazemos começar a perfeição com o desejo sincero de progredir na vida espiritual, e a Ascética conduz a alma, através das vias purgativa e iluminativa, até à contemplação adquirida.
- A Mística é a parte da ciência espiritual que tem por objecto próprio a teoria e a prática da vida contemplativa, desde a primeira noite dos sentidos e da quietude até o matrimônio espiritual.
- Evitamos, pois, na definição que damos, fazer da Ascética o estudo das vias ordinárias da perfeição, e da Mística o estudo das vias extraordinárias. E a razão é que hoje se reserva antes o termo de extraordinário para uma categoria especial de fenômenos místicos, os que são graças gratuitamente dadas e se vêm acrescentar à contemplação como os êxtases e as revelações.
- A contemplação é uma intuição ou vista simples e afetuosa de Deus ou das coisas divinas: chama-se adquirida, quando é fruto da nossa atividade auxiliada pela graça; infusa, quando, ultrapassando essa atividade, é operada por Deus com o nosso consentimento (nº 1299) .
- É de propósito que reunimos num só e mesmo tratado a Teologia Ascética e Mística.
Sem dúvida, que, entre uma e outra, há diferenças profundas que teremos cuidado de assinalar mais tarde; mas há também entre os dois estados, ascético e místico, uma certa continuidade que faz que um seja uma espécie de preparação para o outro, e que Deus utilize, quando o julga conveniente, as disposições generosas do asceta para o elevar aos estados místicos.
Em todo o caso, o estudo da Mística projeita muita luz sobre a ascética e reciprocamente; porque os caminhos de Deus são harmônicos, e a ação tão poderosa que Ele exerce sobre as almas místicas faz melhor perceber, pelo relevo com que ela aparece, a sua ação menos vigorosa sobre os principiantes; assim as provações passivas, descritas por São João da Cruz, fazem melhor compreender as securas ordinárias que se experimentam nos estados inferiores, e do mesmo modo entendem-se melhor as vias místicas, quando se vê a que docilidade, a que maleabilidade chega uma alma que, durante longos anos, se entregou aos árduos trabalhos da ascese. Estas duas partes duma mesma ciência esclarecem-se, pois, naturalmente e · lucram em não serem separadas.
Escrito por Adolphe Tanquerey (1854 – 1932). Traduzido pelo Padre Dr. João Ferreira Fontes.
Extraído da sexta edição da obra: “Compêndio de Teologia Ascética e Mística”,
publicada em 1961 pela Livraria Postulado da Imprensa.
Notas:
- No Pedagogo, L. I., c. 8., P. G., VIII, 318, Clemente dá o nome asceta a Jacob, depois da luta que teve de sustentar com um anjo numa visão misteriosa.
- Orígenes (In Ierem., homil. 19, n. 7, P. G., XIII, 518) designa pelo nome de ascetas uma classe de fervorosos cristãos que praticavam a mortificação e outros exercícios de perfeição.
A imagem associada a esta postagem ilustra recorte da obra: Predella of the San Domenico Altarpiece Fiesole, criada entre 1423 e 1424 pelo pintor italiano, beatificado pela Igreja Católica: Guido di Pietro Trosini (1395 – 1455), mais conhecido por Fra Angelico.
Adendo:
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