O que é a Teologia Ascética?

The Forerunners of Christ with Saints and Martyrs, Fra Angelico, 1423-1424, The National Gallery, London

Excerto da sexta edição da obra: “Compêndio de Teologia Ascética e Mística”, escrita por:
Adolphe Tanquerey (1854 – 1932). Publicada em 1961 pela Livraria Apostulado da Imprensa.
Maiores detalhes e opção de download disponíveis no término desta postagem.



Para melhor explicarmos o que é a Teologia Ascética, exporemos sucessivamente: primeiro, os nomes principais que lhe têm sido dados; segundo, o seu lugar nas ciências teológicas; terceiro, as suas relações com o Dogma e a Moral; quarto, a distinção entre a Ascética e a Mística.


I. Seus diferentes nomes


A Teologia Ascética tem diversas denominações.

  • Chamam-na a ciência dos santos, e com razão, pois que nos vem dos santos que a ensinaram e sobretudo a viveram, e é destinada a fazer santos, explicando-nos o que é a santidade e quais os meios de a alcançar.
  • Outros dão-lhe o nome de ciência espiritual, porque forma espirituais, isto é, homens interiores, animados do espírito de Deus.
  • Mas, como é uma ciência prática, apelidam-na também a arte da perfeição, por ter como fim conduzir as almas à perfeição cristã; ou ainda, a arte das artes, por não haver arte mais excelente que a de aperfeiçoar uma alma na mais nobre das vidas, a vida sobrenatural.
  • Contudo, o nome que hoje mais frequentemente lhe é dado, é o de Teologia Ascética e Mística.

  • A palavra Ascética vem do grego Ασκητική (exercício, esforço) e designa todo o exercício laborioso que se refira à educação física ou moral do homem. Ora a perfeição cristã supõe os esforços que São Paulo de bom grado compara aos exercícios de treino, a que se submetiam os lutadores, para assegurarem a vitória. Era pois, natural designar pelo nome de Ascese os esforços da alma cristã em luta para alcançar a perfeição.
  • Assim o fizeram Clemente de Alexandria [1] e Orígenes [2] após eles, um grande número de Santos Padres. Não é, pois, de estranhar que se tenha dado o nome de Ascética à ciência que trata dos esforços necessários para adquirir a perfeição cristã.
  • Sem embargo, durante longos séculos, o termo que prevaleceu, para designar esta ciência foi o de Teologia Mística Μυστική Θεολογία (misterioso, secreto, e sobretudo segredo religioso ), porque ela expunha os segredos da perfeição.
  • Depois, houve uma época em que essas duas palavras foram empregadas no mesmo sentido; mas veio a prevalecer o uso de reservar o nome de Ascética à parte da ciência espiritual, que trata dos primeiros graus da perfeição até ao limiar da contemplação, e o nome de Mística à que se ocupa da contemplação e da via unitiva.

  • Como quer que seja, resulta de todas estas noções que a ciência de que nos ocupamos é sem dúvida a ciência da perfeição cristã: eis o que nos vai permitir assinalar-lhe o lugar que lhe compete no plano geral da Teologia.

II. O seu lugar na Teologia


Capa da obra: “Compêndio de Teologia Ascética e Mística” sob ISBN 978-8584910809.Ninguém melhor que Santo Tomás fez compreender a unidade orgânica que reina na ciência teológica. Divide a Suma em três partes: na primeira trata de Deus primeiro princípio, que estuda em si mesmo, na Unidade da sua Natureza e na Trindade das suas Pessoas: e nas obras que criou, conserva e governa pela sua providência. Na segunda ocupa-se de Deus último fim, para o qual devem tender os homens, orientando as suas ações para Ele, sob a direção da lei e o impulso da graça, praticando as virtudes teologais e morais e os deveres particulares de cada estado. A terceira mostra-nos o Verbo encarnado fazendo-se nossa via para chegarmos a Deus e instituindo os sacramentos para nos comunicar a graça, a fim de nos conduzir à vida eterna.

Neste plano, a Teologia Ascética e Mística está em conexão com a segunda parte da Suma, sem deixar de se apoiar nas outras duas.

Mais tarde, sem se deixar de respeitar a sua unidade orgânica, dividiu-se a Teologia em três partes: a Dogmática, a Moral e a Ascética.


  • O Dogma ensina-nos o que é preciso crer sobre Deus, a vida divina, a comunicação que dela se dignou fazer às criaturas racionais e sobretudo ao homem, a perda desta vida pelo pecado original, a sua restauração pelo Verbo Encarnado, a sua ação na alma regenerada, a sua difusão pelos sacramentos, a sua consumação na glória.
  • A Moral mostra-nos como devemos corresponder a este amor de Deus, cultivando a vida divina de que Ele se dignou outorgar-nos uma participação, como devemos evitar o pecado e praticar as virtudes e os deveres de estado que são de preceito.
  • Mas, quando se quer aperfeiçoar esta vida, passar além do que é estrito mandamento, e progredir na prática das virtudes duma maneira metódica, é a Ascética que intervém, traçando-nos regras de perfeição.

III. Suas relações com o Dogma e a Moral


A Ascética é, pois, uma parte da Moral cristã, mas a parte mais nobre, aquela que tende a fazer de nós cristãos perfeitos. Se bem que se tornou um ramo especial da Teologia, conserva, não obstante, com o Dogma e a Moral relações íntimas.

  • Tem o seu fundamento no Dogma. Quando quer expor a natureza da vida cristã, é ao Dogma que vai pedir luzes. Efetivamente, esta vida é uma participação da própria vida de Deus; é necessário, pois, remontar ao seio da Santíssima Trindade, para lá encontrar o princípio e a origem dessa vida, seguir a sua história maravilhosa, ver como, outorgada a nossos primeiros pais, foi perdida por sua culpa e restaurada por Cristo Redentor; qual é o seu organismo e o seu modo de operar em nossa alma, por que misteriosos canais nela se difunde e aumenta, como se transforma em visão beatífica no céu. Ora todas estas questões são tratadas na Teologia Dogmática. Nem se diga que se podem pressupor; se não se recordam numa síntese curta e viva, a Ascética parecerá sem base e exigir-se-ão às almas sacrifícios duríssimos, sem se poderem justificar por uma exposição de quanto Deus fez por nós. É, pois, bem verdade que o Dogma é, segundo a bela expressão do Cardeal Manning, a fonte da devoção.
  • Apoia-se também na Moral e completa-a. Esta explica os preceitos que devemos praticar, para adquirir e conservar a vida divina. Ora a Ascética, que nos fornece os meios de a aperfeiçoar, supõe evidentemente o conhecimento e a prática dos mandamentos; seria perigosa ilusão descurar os preceitos sob colar de cultivar os conselhos e pretender praticar as mais altas virtudes, antes de saber resistir às tentações e evitar o pecado.
  • Contudo a Ascética é indubitavelmente um ramo distinto da Teologia Dogmática e Moral. Com efeito, tem o seu objecto próprio: colige no ensino de Nosso Senhor, da Igreja e dos Santos tudo o que se refere à perfeição, natureza, obrigação, e meios da vida cristã, e coordena todos estes elementos, de sorte que deles se forme uma verdadeira ciência.

  • Distingue-se do Dogma, que não nos propõe diretamente senão verdades que se devem crer, pois que, se é certo que se apoia nessas verdades, orienta-as para a prática, utilizando-as para nos fazer compreender, gostar e realizar a perfeição cristã.
  • Distingue-se da Moral, porque, se bem que relembra os mandamentos de Deus e da Igreja, fundamento de toda a vida espiritual, propõe-nos os conselhos evangélicos, e, para cada virtude, um grau mais elevado que aquele que é estritamente obrigatório. É, pois, com toda a razão a ciência da perfeição cristã.

Daqui o seu duplo carácter de ciência um tempo especulativa e prática. Contém sem dúvida uma doutrina especulativa, visto que remonta ao Dogma, para explicar a natureza da vida cristã; mas é sobretudo prática, porque busca os meios que se devem tomar, para cultivar essa vida.

É até mesmo, nas mãos dum sábio diretor uma verdadeira arte, que consiste em aplicar com discernimento e dedicação os princípios gerais a cada alma em particular, a arte mais excelente e dificultosa de todas, ars artium regimen animarum. Os princípios e regras, que daremos, tenderão a formar bons diretores.


IV. Diferença entre a Ascética e Mistica


O que levamos dito aplica-se igualmente a uma e a outra.


  • Para as distinguir, pode-se definir a Teologia Ascética: a parte da ciência espiritual que tem por objecto próprio a teoria e a prática da perfeição cristã desde os seus princípios até o limiar da contemplação infusa. Fazemos começar a perfeição com o desejo sincero de progredir na vida espiritual, e a Ascética conduz a alma, através das vias purgativa e iluminativa, até à contemplação adquirida.
  • A Mística é a parte da ciência espiritual que tem por objecto próprio a teoria e a prática da vida contemplativa, desde a primeira noite dos sentidos e da quietude até o matrimônio espiritual.
  • Evitamos, pois, na definição que damos, fazer da Ascética o estudo das vias ordinárias da perfeição, e da Mística o estudo das vias extraordinárias. E a razão é que hoje se reserva antes o termo de extraordinário para uma categoria especial de fenômenos místicos, os que são graças gratuitamente dadas e se vêm acrescentar à contemplação como os êxtases e as revelações.
  • A contemplação é uma intuição ou vista simples e afetuosa de Deus ou das coisas divinas: chama-se adquirida, quando é fruto da nossa atividade auxiliada pela graça; infusa, quando, ultrapassando essa atividade, é operada por Deus com o nosso consentimento (nº 1299) .
  • É de propósito que reunimos num só e mesmo tratado a Teologia Ascética e Mística.

Sem dúvida, que, entre uma e outra, há diferenças profundas que teremos cuidado de assinalar mais tarde; mas há também entre os dois estados, ascético e místico, uma certa continuidade que faz que um seja uma espécie de preparação para o outro, e que Deus utilize, quando o julga conveniente, as disposições generosas do asceta para o elevar aos estados místicos.

Em todo o caso, o estudo da Mística projeita muita luz sobre a ascética e reciprocamente; porque os caminhos de Deus são harmônicos, e a ação tão poderosa que Ele exerce sobre as almas místicas faz melhor perceber, pelo relevo com que ela aparece, a sua ação menos vigorosa sobre os principiantes; assim as provações passivas, descritas por São João da Cruz, fazem melhor compreender as securas ordinárias que se experimentam nos estados inferiores, e do mesmo modo entendem-se melhor as vias místicas, quando se vê a que docilidade, a que maleabilidade chega uma alma que, durante longos anos, se entregou aos árduos trabalhos da ascese. Estas duas partes duma mesma ciência esclarecem-se, pois, naturalmente e · lucram em não serem separadas.


Adolphe Tanquerey (1854 – 1932).
Escrito por Adolphe Tanquerey (1854 – 1932). Traduzido pelo Padre Dr. João Ferreira Fontes.

Extraído da sexta edição da obra: “Compêndio de Teologia Ascética e Mística”,
publicada em 1961 pela Livraria Postulado da Imprensa.


Notas:

  1. No Pedagogo, L. I., c. 8., P. G., VIII, 318, Clemente dá o nome asceta a Jacob, depois da luta que teve de sustentar com um anjo numa visão misteriosa.
  2. Orígenes (In Ierem., homil. 19, n. 7, P. G., XIII, 518) designa pelo nome de ascetas uma classe de fervorosos cristãos que praticavam a mortificação e outros exercícios de perfeição.

A imagem associada a esta postagem ilustra recorte da obra: Predella of the San Domenico Altarpiece Fiesole, criada entre 1423 e 1424 pelo pintor italiano, beatificado pela Igreja Católica: Guido di Pietro Trosini (1395 – 1455), mais conhecido por Fra Angelico.


Adendo:

Para obter a obra em  formato PDF acesse a seção downloads e escolha a opção Cristianismo, ou clique aqui.


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