“A natureza não é apenas tudo o que é visível a olho nu… também inclui as imagens internas da alma.”
Edvard Munch (1873 – 1944)
Há cerca de 2.400 anos, Platão escrevia uma das mais belas imagens para representar aquela espécie de dupla natureza que tão constantemente percebemos em nossa alma: a que nos inclina às coisas do alto, à beleza, à verdade, e a que nos arrasta para as baixezas do mal, do erro e da ignorância.
“Como é sabido”, diz Giovanni Reale1, “nesse mito2 Platão representa a alma como um carro alado puxado por dois cavalos, um branco e de boa raça e o outro negro e de raça ruim, e guiado por um auriga. Tanto as almas dos deuses como as dos homens são representadas deste modo, com a única diferença de que os cavalos e os aurigas dos deuses ‘são todos bons’, enquanto os dos homens ‘são mistos’.
A entrada das almas nos corpos físicos acontece por causa da perda das asas sofrida pelas almas dos homens.
Mas eis o que Platão diz das asas e das coisas que as nutrem e fazem crescer:
A propriedade natural da asa é levar para cima o que é pesado, elevando-o para onde habita a estirpe dos deuses, e de um modo ou de outro é dentre as partes do corpo a que mais participa do divino; e o divino é o que é belo, sábio, bom e tudo o que é desse tipo. De tais coisas, mais do que tudo, as asas da alma são nutridas e crescem, enquanto pela feiura e pela maldade e por todos os contrários negativos são arruinadas e perecem.3
Ora, os carros alados das almas humanas acompanham, no além, numa viagem celeste que ocorre ciclicamente, doze grupos de deuses dispostos em ordem, encabeçados por Zeus. E enquanto sobem até o alto do céu para alcançar a visão e a contemplação das realidades absolutas no mundo hiperurânico, as almas dos deuses na difícil subida procedem com facilidade, porque têm carros bem equilibrados e fáceis de guiar; ao invés, os carros alados das almas humanas procedem com fadiga, porque o cavalo de raça ruim tende a arrastar para a terra, pondo em grande dificuldade o auriga que não o tenha bem treinado.
As almas que melhor seguem e imitam o deus que as guia, mesmo com fadiga, porque todas são de algum modo perturbadas pelos cavalos, conseguem ver as verdadeiras realidades. Outras, ao contrário, ora levantam a cabeça, ora a abaixam por causa da violência dos cavalos; e por isso conseguem ver só algumas realidades e não outras. Algumas almas, depois, embora aspirando alcançar a visão das verdadeiras realidades, não as alcançam de modo nenhum, enquanto não conseguem proceder na viagem de modo oportuno, e por isso se chocam umas com as outras na tentativa de se ultrapassar, e surgem os tumultos. Consequentemente, algumas ficam machucadas, arruínam-se muitas penas das suas asas, e assim não chegam a fruir da ‘contemplação do ser’, e assim, ‘afastando-se, nutrem-se da opinião’. E as razões dessa viagem e do empenho que nela põem as almas é explicado por Platão do seguinte modo:
O motivo pelo qual tanto se empenham em ver a Planície da Verdade é este: o alimento apto para as partes melhores da alma provém do prado que lá está, e a natureza da asa com a qual a alma voa nutre-se justamente disso.4”
Notas:
- Reale, Giovanni. Para uma nova interpretação de Platão. 2ª. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2004 (notas e grifos nossos).
- Cf. Fedro, 246 A-D, e a retomada em 253 C – 254 B.
- Fedro, 246 D 6 – E 4.
- Fedro, 248 B 5 – C 2.
Nota da editoria:
Imagem da capa: “Horses and coachman”, pintura a óleo de autoria desconhecida.