“Todo poder corrompe, e o poder absoluto corrompe de maneira absoluta.”
Lord Acton (1834 – 1902)
Excerto do capítulo 10 da obra “O caminho da servidão”, de Friedrich Hayek.
Há três razões principais para que um grupo numeroso, forte e de ideias bastante homogêneas não tenda a ser constituído pelos melhores e sim pelos piores elementos de qualquer sociedade. De acordo com os padrões hoje aceitos, os princípios que presidiriam à seleção de tal grupo seriam quase inteiramente negativos.
Em primeiro lugar, é provavelmente certo que, de modo geral, quanto mais elevada a educação e a inteligência dos indivíduos, tanto mais se diferenciam os seus gostos e opiniões e menor é a possibilidade de concordarem sobre determinada hierarquia de valores. Disso resulta que, se quisermos encontrar um alto grau de uniformidade e semelhança de pontos de vista, teremos de descer às camadas em que os padrões morais e intelectuais são inferiores e prevalecem os instintos mais primitivos e “comuns”. Isso não significa que a maioria do povo tenha padrões morais baixos; significa apenas que o grupo mais amplo cujo valores são semelhantes é constituído por indivíduos que possuem padrões inferiores. Ê, por assim dizer, o mínimo denominador comum que une o maior número de homens. Quando se deseja um grupo numeroso e bastante forte para impor aos demais suas ideias sobre os valores da vida, jamais serão aqueles que possuem gostos altamente diferenciados e desenvolvidos que sustentarão pela força do número os seus próprios ideais, mas os que formam a “massa” no sentido pejorativo do termo, os menos originais e menos independentes.
Se, contudo, um ditador em potencial tivesse de contar apenas com aqueles cujos instintos simples e primitivos são muito semelhantes, o número destes não daria peso suficiente às suas pretensões. Seria preciso aumentar-lhes o número, convertendo outros ao mesmo credo simples
A esta altura entra em jogo o segundo princípio negativo da seleção: tal indivíduo conseguirá o apoio dos dóceis e dos simplórios, que não têm fortes convicções próprias mas estão prontos a aceitar um sistema de valores previamente elaborado, contando que este lhes seja apregoado com bastante estrépito e insistência. Serão, assim, aqueles cujas ideias vagas e imperfeitas se deixam influenciar com facilidade, cujas paixões e emoções não é difícil despertar, que engrossarão as fileiras do partido totalitário.
O terceiro e talvez mais importante elemento negativo da seleção está relacionado com o esforço do demagogo hábil por criar um grupo coeso e homogêneo de prosélitos. Quase por uma lei da natureza humana, parece ser mais fácil aos homens concordarem sobre um programa negativo — o ódio a um inimigo ou a inveja aos que estão em melhor situação — do que sobre qualquer plano positivo. A antítese “nós” e “eles”, a luta comum contra os que se acham fora do grupo, parece um ingrediente essencial a qualquer ideologia capaz de unir solidamente um grupo visando à ação comum. Por essa razão, é sempre utilizada por aqueles que procuram não só o apoio a um programa político mas também a fidelidade irrestrita de grandes massas. Do seu ponto de vista, isso tem a vantagem de lhes conferir mais liberdade de ação do que qualquer programa positivo. O inimigo, seja ele interno, como o “judeu” ou o “kulak”, seja externo, parece constituir uma peça indispensável no arsenal do líder totalitário.
Se na Alemanha o judeu se tornou o inimigo, cedendo em seguida o lugar às “plutocracias”, isso foi decorrência do sentimento anticapitalista em que se baseava todo o movimento, o mesmo acontecendo em relação à escolha do kulak na Rússia. Na Alemanha e na Áustria, o judeu chegara a ser encarado como o representante do capitalismo porque a antipatia tradicional votada por vastas classes da população às atividades comerciais tornara tais atividades mais acessíveis a um grupo praticamente excluído das ocupações mais respeitadas. É a velha história: a raça alienígena, admitida apenas nas profissões menos nobilitantes, torna-se objeto de ódio ainda mais acirrado precisamente por exercê-las. O fato de, na Alemanha, o anti-semitismo e o anticapitalismo terem a mesma origem é de grande importância para a compreensão do que tem acontecido naquele país, embora os observadores estrangeiros poucas vezes se dêem conta disso.
Considerar a tendência universal da política coletivista ao nacionalismo como decorrência exclusiva da necessidade de um apoio sólido seria negligenciar outro fator não menos significativo. Com efeito, é questionável que se possa conceber com realismo um programa coletivista que não atenda aos interesses de um grupo limitado, ou que o coletivismo possa existir sob outra forma que não a de um particularismo qualquer, nacionalista, racista ou classista. A ideia de uma comunhão de propósitos e interesses com os próprios semelhantes parece pressupor maior similaridade de ideias e pontos de vista do que aquela que existe entre os homens na qualidade de simples seres humanos. Se não podemos conhecer pessoalmente todos os outros componentes do nosso grupo, eles terão de ser pelo menos do mesmo tipo dos que nos cercam, terão de pensar e falar do mesmo modo e sobre os mesmos assuntos, para que nos possamos identificar com eles. O coletivismo em proporções mundiais parece inconcebível, a não ser para atender aos interesses de uma pequena elite dirigente. Ele por certo suscitaria problemas, não só de natureza técnica mas sobretudo moral, que nenhum dos nossos socialistas estaria disposto a enfrentar. Se o proletário inglês tem direito a uma parcela igual da renda atualmente proporcionada pelos recursos financeiros do país, assim como ao controle do emprego desses recursos, porque eles resultam da exploração, pelo mesmo princípio todos os hindus teriam direito não só à renda mas também ao uso de uma parcela proporcional do capital britânico.
Que socialistas, porém, pensam de fato em repartir de maneira equitativa, entre toda a população da terra, os atuais recursos de capital? Para todos eles o capital pertence, não à humanidade, mas à nação — embora, mesmo no âmbito da nação, poucos ousem sustentar que as regiões mais ricas devem ser privadas de “seus” bens de capital para auxiliar as regiões mais pobres. Os socialistas não estão dispostos a conceder ao estrangeiro aquilo que proclamam como um dever para com os seus concidadãos. De um ponto de vista coletivista coerente, os direitos dos países pobres a uma nova divisão do mundo são de todo justificados — embora, se fossem aplicados com lógica, aqueles que os reivindicam com maior insistência acabassem quase tão prejudicados quanto as nações mais ricas. Têm, por conseguinte, o cuidado de não fundamentar suas exigências em princípios igualitários, mas numa pretensa capacidade superior de organizar outros povos.
Uma das contradições inerentes à filosofia coletivista é que, embora baseada na moral humanista aperfeiçoada pelo individualismo, só se mostra praticável no interior de um grupo relativamente pequeno. Enquanto permanece teórico, o socialismo é internacionalista; mas ao ser posto em prática, na Alemanha ou na Rússia, torna-se violentamente nacionalista. Esta é uma das razões por que o “socialismo liberal”, tal como o imagina a maioria das pessoas no mundo ocidental, é apenas teórico, ao passo que a prática do socialismo é em toda parte totalitária. No coletivismo não há lugar para o amplo humani-tarismu do liberal, mas apenas para o estreito particularismo do totalitário.
Se a “comunidade” ou o Estado têm prioridade sobre os indivíduos, se possuem objetivos próprios superiores aos destes e deles independentes, só os indivíduos que trabalham para tais objetivos podem ser considerados membros da comunidade. Como conseqüência necessária dessa perspectiva, uma pessoa só é respeitada na qualidade de membro do grupo, isto é, apenas se coopera para os objetivos comuns reconhecidos, e toda a sua dignidade deriva dessa cooperação, e não da sua condição de ser humano. Os próprios conceitos de humanidade e, por conseguinte, de qualquer forma de internacionalismo são produtos exclusivos da atitude individualista e não podem existir num sistema filosófico coletivista.
Excerto do capítulo 10 da obra “O caminho da servidão”,
de Friedrich Hayek (1899 – 1892).
Nota da editoria:
Imagem da capa: “Le boulevard des capucines” (1813), por Claude Monet (1840 – 1926).