Escrito especialmente para o Cultura de Fato, este conto em duas partes de Douglas Alfini Jr. apresenta, por trás do pano de fundo da ficção científica, um cenário muito atual: o itinerário de um homem de fé por uma sociedade na qual esta se encontra proibida, submersa pelas promessas de salvação dos fetiches científicos e avanços tecnológicos.
Nesta primeira parte, o protagonista relembra uma expedição no novo lar da humanidade. A promessa era a de uma colônia segura, livre das destruições ambientais e da ganância do homem. Algo, porém, ronda a poeira cinzenta de E2 – algo não previsto pela propaganda oficial dos idealizadores da “nova Terra”.
O autor dedica este conto à memória do professor Olavo de Carvalho.
“Rogo por tua misericórdia, Senhor. Proteja-me de mim mesmo… estou cansado e com medo.”
Foram suas últimas palavras antes de adormecer. Extenuado física e psicologicamente, decidiu calar-se dali em diante. “Deus escutará meus pensamentos.”
Seguia encolhido entre as ferragens de um pequeno vagão descarrilado dos trilhos que cruzavam aquele deserto, depois que a tempestade de vento o fez rolar colina abaixo. Sobrevivia assistindo diminuir, noite e dia, as provisões restantes em sua mochila, que agora resumiam-se em meia garrafa d’água e um pacote pequeno de ração. A morte era iminente e ele já se havia entregado a ela. Após ter adormecido ao final daquela última prece, acordou e, notando as frestas ainda escuras, viu que a noite continuava lá — lamentou-se por isso.
As noites eram verdadeiras sessões de tortura e terror. Ouvia-se gritos e gemidos em vários idiomas, e às vezes alguém implorava por ajuda gritando seu nome. O medo era ao mesmo tempo atraente e fascinante, mas ele havia prometido a si mesmo que resistiria à incontrolável tentação de espiar novamente. Restava aguardar ansioso pelo amanhecer, este sim uma verdadeira bênção, o que o levou a manter um ritual de agradecimento a que se ateve religiosamente por dias; agora, porém, também isto se havia perdido em meio ao desânimo.
Quando enfim o sol raiou no mesmo canto do deserto de pó cinzento e céu alaranjado em que se apresentava todos os dias, pôde sentir seu calor e, apenas então, empurrar a placa de ferro retorcida que lhe servia de porta, respirando um pouco daquele ar quente e ácido que lhe fazia arder as narinas, mas que ainda assim era melhor do que a claustrofobia de dentro daquele amontoado de metal.
De mãos na cintura, observando o horizonte, parecia agora um agricultor orgulhoso a admirar o verde de sua terra, quando na verdade tudo o que via era uma imensidão de poeira quente, infértil e mau cheirosa, além dos restos da ferrovia que ele mesmo ajudara a instalar. E que ideia estúpida foi aquela, era o que pensava toda manhã. Onde teria sido o ponto de declínio intelectual da humanidade para que retrocedesse tanto em sua tecnologia? Em um dia, veículos autônomos exploravam Marte; no outro, tão logo anunciada a primeira colônia interplanetária da história, um trem se torna o símbolo do progresso no novo mundo… um trem, artigo de três séculos atrás! De qualquer modo, era apenas um operário; como poderia saber mais do que os gênios que haviam descoberto a nova morada da humanidade?
Entre pensamentos e lamentações, ele não tinha muito o que fazer nem para onde ir durante o curto dia em E2 (abreviação de Earth Two, nome absolutamente nada criativo com o qual o novo planeta fora batizado). Estava fraco, confuso, e apenas se sentia seguro enquanto o sol brilhava. Afinal, nenhum deles havia aparecido durante o dia, desde que tudo começou… ou terminou. E era impossível não pensar neles.
Lembrava-se agora do fascínio que despertaram no velho professor Dr. Giorgos Kalathesis, o estimado cientista grego de grande erudição que estava ao seu lado quando os primeiros foram vistos. Foi um dia assustador, mas ao mesmo tempo de rara beleza, após tanto luto. Mais de metade da tripulação da Ignis Raeda, a grande espaçonave expedicionária que os havia levado a E2, já havia sido dizimada. Suicídios e assassinatos inspirados pelos motivos mais banais, acidentes de toda natureza e uma enorme gama de doenças não catalogadas foram os responsáveis pelo início do fim de um sonho terrestre. A colônia ruíra em toda sua ambição antes mesmo de ganhar forma. As pequenas aldeias-célula, como foram chamadas, agora meras cidades-fantasma conectadas por uma malha férrea inútil, costumavam ficar cheias de operários que se entregavam dia e noite ao trabalho de construção de um novo lar para a espécie, juntamente com cientistas sempre apressados, dedicados aos seus estudos, pressionados pela ganância das grandes corporações que prometiam à humanidade uma nova era de salvação.
“Salvação”… esta havia sido a palavra da moda, banalizada por décadas até o grande anúncio. Uma massiva propaganda exaltava a oportunidade de um recomeço para a humanidade em um planeta virgem, intocado pela poluição, pelo aquecimento global, pelas guerras ou por qualquer outra coisa que pudesse ser usada como símbolo de destruição causada pela maldade do homem. De uma hora para outra, a Terra não servia mais. E2 era apresentado a todos através de uma avalanche de fotos e vídeos divulgados mensalmente pelas agências espaciais, que garantiam cada vez mais confiantemente a qualidade do ar, a adequação gravitacional e geofísica e a possibilidade real de sobrevivência humana sem danos aparentes no novo planeta. Nem mesmo a falta de água potável imediata (fato inicialmente carimbado como “mendacidade conspiracionista” pelos cientistas envolvidos no projeto, mas posteriormente admitido por eles próprios) seria um empecilho ao sonho de uma nova era. Estudos avalizados pelos mais renomados profissionais garantiam a presença de nascentes no planeta, mesmo que nenhuma das missões de exploração anteriores as tivessem descoberto. Até que fossem realmente encontradas, os novos habitantes sobreviveriam com a reserva levada em enormes tanques purificadores. O fato é que nada atrapalharia a decisão que já havia sido tomada: a humanidade estava de mudança, fugindo de ameaças tão reais quanto as fontes de água cristalina em Earth Two.
Quando a missão Ignis Raeda foi anunciada para levar as primeiras centenas de habitantes a E2, seus tripulantes foram exaltados como pioneiros e invejados pelos milhões que esperavam ansiosos por sua vez. Ele, que agora era o único sobrevivente daquele lugar horrendo que em nada se parecia com a Terra, fizera parte desta primeira leva. Tudo o que lhe restava agora eram as lembranças, mais firmes em seus momentos de sobriedade — lembranças da família, que tanto se orgulhou de seu feito, dos companheiros de viagem desaparecidos, pessoas tão diferentes dele, mas que haviam se tornado inesquecíveis por suas peculiaridades, mesmo em seus delírios cada vez mais comuns, provocados pela atmosfera fantasmagórica e ao mesmo tempo tão vazia do lugar. Pessoas como a Dra. Cécille — que mulher estranha era ela —, ou mesmo o calado Aaronson… qual era mesmo a nacionalidade dele? Dinamarquês? Sueco? Não importava… à menor ameaça do entardecer, o sobrevivente voltava ao vagão. A noite, por ali, caía de repente.
Um gole d’água e uma porção de migalhas: seu estoque duraria no máximo por mais dois dias. Não havia esperança. Como um animal acuado no canto de uma jaula, espremido desconfortavelmente e tentando amoldar seu corpo às torções do metal, adormeceu. A recente sessão de nostalgia lhe havia resultado em suficientes subsídios para um sonho, e este lhe transportou novamente ao fatídico dia.
As cidades já estavam completamente submersas pela poeira; o grupo de cinco pessoas caminhava a esmo em busca de abrigo. Tentavam encontrar os trilhos que indicariam o caminho de uma ruína a outra, onde poderiam procurar por provisões que os mantivessem vivos até que uma missão de resgate os viesse salvar. Sonhavam em vão: jamais viriam a se comunicar com a Terra outra vez e nem saberiam realmente o que houve. Completamente esquecidos, apenas caminharam, tanto e por tanto tempo que chegaram a ultrapassar e retornar várias vezes aos limites das terras mapeadas de E2.
Foi aí que a noite mais negra clareou-se pela luz das estrelas, e um grande tremor foi sentido por todos, acompanhado de um som retumbante que se assemelhava à chegada de uma manada. Parando de súbito, aguardaram, vulneráveis, o surgimento da causa do estrondo, que não tardaria a revelar-se.
Viram primeiro suas botas, pisando forte o suficiente para deixar pegadas que mais se pareciam com verdadeiras crateras. Depois, ao baixar da poeira, o corpanzil desajeitado e uma longa barba ruiva. Nas mãos, um pesado machado. A aparição era enorme; fosse aquilo o que fosse, assemelhava-se ao que deveria ser um gigante, e possuía traços peculiares que lembravam um viking saído dos livros de ficção e folclore. Era assustador e, ao mesmo tempo, tinha algo de caricato, de exagerado, que parecia fora de lugar. O ser caminhava decidido em direção ao grupo, urrando, furioso, erguendo o machado e deitando-o ao solo a fim de atingi-los; eles corriam desenfreadamente, numa tentativa desesperada de fuga impossível. O mais lento deles, o obeso e genial matemático japonês Heiji Fukuda, acabou ficando para trás. Cara a cara com a morte certa, apenas se ajoelhou e, fechando os olhos, com a resignação de um samurai, esperou que a lâmina descomunal do monstro lhe partisse ao meio. No entanto, o machado transpassou seu corpo — e nada aconteceu. O algoz seguiu em perseguição ao restante do grupo, deixando para trás um Fukuda completamente atônito, de olhos arregalados e marejados, olhando sem foco para o horizonte.
O grupo, já sem forças, foi rapidamente alcançado. Em plena agonia, contemplavam agora mais detidamente o ser que os caçava sem qualquer explicação. Foi quando Aaronson, em um sobressalto, pareceu reconhecer nele algo de familiar. Tomado por lágrimas, parecia congelado, imóvel feito uma estátua. Enquanto seus companheiros buscavam reiniciar a fuga, ele, parado em frente ao perseguidor, apenas murmurou: “Pai…”. O machado ergueu-se uma vez mais e golpearia Aaronson fatalmente se um novo urro, vindo da outra extremidade do deserto, não tivesse cortado os ares. O gigantesco carrasco virou-se imediatamente, tão surpreso quanto qualquer um deles, e viu sair das trevas uma besta ainda mais assustadora do que ele próprio, espécie de massa amorfa que se arrastava emitindo ganidos de dor a cada movimento, como se fosse a personificação do sofrimento. De repente, com um espasmo aflitivo, a criatura saltou e caiu em frente ao colossal opositor, revelando-se um emaranhado de ossos e pele arrancada. Sem titubear, o enorme agressor tentou acertá-la com o machado.
— Teratomaquia! — exclamou extasiado o professor Kalathesis, mais admirado do que apavorado, antes de se afastar do embate entre as duas criaturas. Todos retomariam a fuga, menos Aaronson. Ainda petrificado e com o olhar voltado para o nada, apenas repetia em voz baixa, na língua materna: “Por que me odiou tanto, velho maldito? Por quê? Mas eu também sempre te odiei…”. A poeira levantada pelos movimentos dos titãs tomou-lhe o corpo, cobrindo-o até que sua figura desaparecesse por completo. Nenhum dos outros perceberia sua ausência durante a corrida, não até que fosse tarde demais.
Andaram por quilômetros durante toda aquela noite e, mesmo à distância, ainda puderam escutar os gritos e baques vindos daquela inexplicável e surreal arena de seres tão medonhos quanto extraordinários. Caíram de cansaço ao amanhecer, desidratados e com fome; dormiram por horas e, quando acordaram, imploraram pela morte. A exceção era aquele que viria a ser o único sobrevivente da expedição, e que, ao ver o sol vermelho nascendo novamente, ajoelhou-se e agradeceu a Deus, já não se importando com as rigorosas represálias legais que o ato, em uma situação normal, lhe acarretaria.
Mexeu-se assustado em seu abrigo: já não sabia quando ou se havia acordado. O sonho misturou-se aos delírios de sua nova vida reclusa; os incríveis acontecimentos passados eram o único aspecto realmente concreto para ele. Revivia a todo instante os momentos em que dividira o planeta com aquelas pessoas, que, se admiráveis porque dotadas de uma inteligência tão superior à dele, ao mesmo tempo revelavam-se tão mais infelizes. Este era o caso da Dra. Cécille, por exemplo. Seu desaparecimento fora sem dúvida o mais triste de todos…
Ainda não haviam encontrado rastros da ferrovia. Abrigavam-se então nas encostas de uma rocha formada de poeira sedimentada, que, por algum motivo, naquele exato local, não se esfarelava com o vento sempre intenso, como era comum acontecer. Numa noite silenciosa em que a morte pairava sobre seus corpos frágeis, um gemido soava distante, algo que eles já haviam escutado antes. Entreolhavam-se esperando que alguém dissesse o que fazer, mas não havia solução. Aquele triste lamento infantil se aproximava mais e mais, até que seu emissor pareceu posicionar-se atrás da rocha. Eles não se moviam e tentavam controlar a respiração, mas em vão. Aquela coisa disforme havia provavelmente derrotado seu imenso adversário e já sabia que estavam lá.
— Maman! Sauve-moi!
Foi o grito rouco mergulhado em agonia que ecoou pelo infinito, tocando as profundezas da alma de Cécille. Como que hipnotizada, a doutora levantou-se, ignorando os protestos dos colegas, e contornou a rocha, ficando cara a cara com a criatura que mais parecia um amontoado de membros triturados. O monstro, ao vê-la, começou a modificar sua aparência, fazendo surgir sob uma fina membrana transparente o rosto puro de um bebê, dono de um inocente par de olhos que agora piscavam para ela. Visivelmente comovida, a doutora foi ao seu encontro, como que querendo abraçá-lo, mas a natureza do que estava à sua frente não se aproximava de qualquer tipo de amor. No instante seguinte, a criatura metamorfoseou-se mais uma vez: uma boca imensa se abriu e aquela pilha de carne passou a devorar a pobre mulher, começando pela cabeça e engolindo pouco a pouco o restante do corpo conforme a arrastava para longe, até desaparecer na nuvem de poeira que levantou.
Depois de assistir àquele absurdo espetáculo, os três expedicionários restantes já haviam tirado as conclusões necessárias e sabiam que seu destino estava traçado. A força maligna existente naquele planeta os viria buscar um a um; a pergunta era quando e como.
Nota da editoria:
As imagens exibidas ao longo do texto, assim como na capa, são obras do artista polonês Zdzislaw Beksinski (1929 – 2005).