“Um dos principais argumentos que se pode apresentar contra a existência de Deus é o fato de haver o mal no mundo.
Esta objeção está sempre presente no pensamento contemporâneo dos militantes do ateísmo.”
Charles Morerod 1
Em 2005, o Tratado de ateologia de Michel Onfray difundiu amplamente (cem mil cópias vendidas) ideias demasiado superficiais2. O sucesso desta publicação mostra apenas uma coisa: a fraqueza cultural do catolicismo na França contemporânea. Muito mais sutilmente, André Comte-Sponville oferece uma espiritualidade ateísta3. No mundo anglo-saxão, um sucesso considerável foi alcançado pelo ateísmo virulento de Richard Dawkins, biólogo professor na Universidade de Oxford4. Também em Oxford, Sir Anthony Kenny, ex-padre católico que se apresenta como especialista em Santo Tomás de Aquino, publicou diversos trabalhos em favor do agnosticismo5. Um trabalho próximo ao de Dawkins, menos polêmico, foi publicado por seu amigo americano Daniel Dennett6. De um modo mais filosófico, Robin Le Poidevin, professor de filosofia da religião na Universidade de Leeds, empreende uma refutação sistemática dos argumentos a favor da existência de Deus7.
As questões colocadas por esses ateus a propósito da questão do mal podem ser resumidas da seguinte forma:
- Como um Deus todo-poderoso, onisciente e infinitamente bom pode existir em face da presença do mal?
- Um argumento assim tão problemático sobre a ordem do mundo pode ser utilizado para demonstrar a existência de Deus?
- O mal, seja físico, seja moral, é atribuível, no fim das contas, à responsabilidade do Criador.
- Dizer que o mal existe porque Deus nos deixa livres significa negar a liberdade de Deus e dos bem-aventurados, e colocar a ignorância acima do conhecimento.
- Como pode um Deus Pai deixar sofrer seus filhos?
Na Suma teológica, no artigo 3 da questão II, Santo Tomás de Aquino apresenta este argumento de maneira muito mais técnica, isto é, metafísica. De fato, a objeção parte de um princípio lógico: “De dois contrários, se um é infinito, o outro está totalmente abolido”. Por exemplo, uma luz de intensidade finita deixaria ainda áreas de sombra, mas se houvesse uma luz infinita, toda a escuridão desapareceria necessariamente. A palavra Deus evoca a noção de um bem infinito. Portanto, se a realidade designada pela palavra Deus existisse, não haveria absolutamente mal algum. A objeção pode ser colocada da seguinte maneira:
- Proposição maior 1: Se Deus é, o mal não é.
- Proposição menor 1: Ora, o mal é.
- Conclusão 1: Portanto, Deus não é.
Prova da proposição maior 1
- Proposição maior 2: Se um de dois contrários é infinito, o outro é abolido.
- Proposição menor 2: Ora, Deus é bondade infinita, e a bondade é o contrário do mal.
- Conclusão 2 = proposição maior 1: Portanto, se Deus é, o mal não é.
Santo Tomás não encontra dificuldades em demonstrar que deve-se negar a proposição maior 1 e, na proposição menor 2, negar que “a bondade é o contrário do mal”. O mal é a privação, e não o contrário do bem, isto é, o mal não é algo totalmente diferente do bem, diametralmente oposto a ele e que lhe fizesse uma total abstração; o mal é a ausência de uma certa porção de bem no bem. A doença, por exemplo, é a ausência de uma certa porção de saúde em um organismo que, sob outros aspectos, permanece saudável: os cegos ouvem e os surdos veem. Longe de excluir o bem, o mal o pressupõe, assim como longe de excluir toda a saúde (o que seria excluir a vida), a doença a pressupõe. E, portanto, longe de excluir a existência de Deus, o mal a pressupõe, pois Deus é a causa necessária da porção de bem que resta e que o mal pressupõe. Esta resposta lógica é satisfatória aos olhos da lógica. Mas ainda nos falta penetrar os termos. A resposta de Santo Tomás é “extremamente elíptica”8, mas se situa em perfeita conformidade com esta resposta de ordem lógica. “À objeção do mal”, diz ele, “Santo Agostinho responde: Deus, sumamente bom, não permitiria de modo algum que qualquer mal se introduzisse em suas obras se não fosse tão poderoso e bom que não pudesse fazer, do próprio mal, o bem. É, pois, à infinita bondade de Deus que está ligada sua vontade de permitir os males para deles tirar o bem”.
Santo Tomás redireciona o argumento do mal em favor da existência de Deus. O mal, longe de pôr em causa a existência de Deus, antes a justifica. Isso se compreende se concebemos o que é o mal: privação pura, ele pressupõe a realidade a que priva de seu bem. Na Contra gentes9, Santo Tomás oferece esta outra resposta: “Se o mal existe, Deus existe. De fato, não haveria mal algum se suprimíssemos a ordem do bem, da qual o mal é privação. Ora, esta ordem não existiria se Deus não existisse”. A existência do mal é a existência de um parasita, a qual revela a do organismo em que se enxerta e altera. A existência do mal reconduz, portanto, à existência de Deus. Pois de onde vem o bem, se Deus não existe?
Dito isto, a questão colocada pela objeção permanece, pois de onde vem o mal, se Deus existe? O que é manifestamente falso é a resposta que o opositor oferece à questão da origem do mal. Mas, ao demonstrar que esta resposta é falsa, não estaremos também dando a resposta verdadeira à questão. De onde vem o mal? Do fato de que não há Deus, ou seja, de que não há bondade infinita? Não, muito pelo contrário. Então, de onde vem o mal? A resposta a esta pergunta já não diz respeito à questão da existência de Deus e não temos de dá-la aqui. Ela toca uma outra questão, que é a da vontade de Deus10 e sua providência11. O mal representa uma objeção válida quanto ao governo de Deus, e não quanto à sua existência.
Caetano, no entanto, se esforçou para responder a esta objeção com maior profundidade, em seu comentário12. Concedendo, por pura tática, a proposição maior do opositor, ele observa que a afirmação “um contrário exclui o outro” pode ser entendida de duas maneiras: do ponto de vista da causa formal ou do ponto de vista da causa eficiente. Do ponto de vista da causa formal, um contrário apenas exclui o outro no sujeito em que se encontra: se a neve é branca, está excluído que seja preta, mas não está excluído que o céu o seja. Neste sentido, o fato de Deus ser bom exclui tão somente que haja mal em Deus, mas não exclui que haja mal no mundo. Do ponto de vista da causa eficiente, um agente que comunique certas determinações ao seu efeito exclui proporcionalmente as determinações contrárias: por exemplo, o fogo que causa o calor exclui, no próprio fato, a frieza. Este é, então, o sentido da objeção. Tendo assim delimitado o problema, Caetano distingue entre causalidade unívoca, em que o agente comunica ao efeito toda a sua perfeição, e causalidade analógica, em que o agente não comunica toda a sua perfeição ao efeito e em que se pode encontrar, no efeito, uma determinação oposta à causada pelo agente. O argumento do opositor seria válido se Deus fosse um agente unívoco, mas, neste caso, Deus causaria Deus, isto é, um ser e um bem infinitos. Não sendo o universo como tal, um mal pode nele coexistir com o bem que Deus nele causa.
Mas podemos nos perguntar se esta resposta de Caetano não concede muito ao seu opositor. De fato, o mal é a privação do bem, e não o seu contrário. E a partir daí, a objeção rebate: mesmo que Deus não possa causar senão seres de limitada perfeição, por que e como causaria Ele a privação dessa perfeição inicialmente causada e, portanto, de fato necessária? Pois a privação é carentia boni debiti, a ausência do bem que deveria ser. Tudo isso põe em causa não a existência de Deus, mas seu governo, e nos reconduz uma vez mais à questão da providência divina.
E é claro, portanto, que todas as objeções do ateísmo contemporâneo e acima sintetizadas erram semelhantemente o alvo e pecam pelo mortal sofisma do ignoratio elenchi: não conseguem justificar o ateísmo enquanto tal, nem invalidar a existência de Deus, como tanto afirmam. A verdadeira questão por eles levantada, e com razão, não é, portanto, “como poderia existir um Deus?”, mas “por que o Bom Deus permite isto?”. E isso nos traz de volta à questão da divina providência. Em todo caso, porém, ninguém pode negar que “Deus existe”.
Por Pe Jean-Michel Gleize.
Artigo original disponível em https://laportelatine.org/formation/apologetique/le-mal-face-a-dieu.
Padre Gleize é professor de apologética, eclesiologia e dogma no Seminário São Pio X, de Écône.
É o principal colaborador do Courrier de Rome. Participou das discussões doutrinais entre
Roma e a FSSPX entre 2009 e 2011.
Traduzido por Daniel Marcondes.
Notas:
- Cf. Charles Morerod, Quelques athées contemporains à la lumière de saint Thomas d’Aquin em Nova et vetera, ano LXXXII (abril-maio-junho de 2007), pp. 151ss, especialmente pp. 184-200.
- Cf. Emilio Brito, L’athéologie sans peine de Michel Onfray. A propos d’un livre récent em Revue théologique de Louvain, ano 37, fasc. 1, 2006, pp. 79-85. Nascido em 1942, em Havana, Emilio Brito, SJ foi ordenado sacerdote em 1972. Foi professor de teologia fundamental e filosofia da religião na Universidade Católica de Louvain, de 1983 a 2007. É um reconhecido especialista no pensamento religioso idealista alemão (Hegel, Schelling, Schleiermacher).
- André Comte-Sponville, L’Esprit de l’athéisme, Introduction à une spiritualité sans Dieu, Albin Michel, 2006.
- Richard Dawkins, The God delusion, Bantam Press, Londres, 2006. Pode-se encontrar, na internet, as reproduções em vídeo das conferências de Richard Dawkins, mostrando sua habilidade dialética e a virulência de suas palavras.
- Anthony Kenny, The Unknown God, Agnostic Essays, Continuum, Londres-Nova York, 2005.
- Daniel C. Dennett, Breaking the Spell, Religion as a Natural Phenomenon, Penguin Books, Londres, 2006.
- Robin Le Poidevin, Arguing for Atheism, An Introduction to the Philosophy of Religion, Routledge, Londres-Nova York, 1996 (reimpresso em 2004).
- Serge Bonino, Dieu, Celui qui est (Deo ut uno), Bibliothèque de la Revue thomiste, Parole et Silence, 2016, p. 214.
- Suma contra os gentios, livro III, capítulo 71.
- Cf. Suma teológica, questão 19 da prima pars.
- Cf. Suma teológica, questão 22 da prima pars.
- Ao no IX.
Nota da editoria:
Imagem de capa: “Cain matando Abel” (século XIX), autor desconhecido.