Viagem

Obra: "The Travelling Companions" (1862), por Augustus Leopold Egg (1816 - 1863)

Muitos homens, como as crianças, querem uma coisa, mas não as suas consequências.
José Ortega y Gasset (1883 – 1955)



Atualmente, crianças são submetidas desde muito cedo a separar o lixo orgânico dos recicláveis; quando apenas um pouco mais velhas, já recebem educação financeira e sexual. Aulas de música ou de artes tornaram-se desnecessárias, ler uma poesia para “senti-la” tornou-se perda de tempo. Só a técnica importa; adquirir uma “boa profissão” é tudo; agir como um robô, tomando rápidas decisões logarítmicas, é a garantia do sucesso financeiro, e, de bônus, ainda confere um excelente status.

O lado sentimental está sendo descartado? É claro que não. Sabendo-se que furões e lontras correm o risco de extinção, há grandes comoções; árvores sendo derrubadas para a produção de papéis causam enorme tristeza, e quando alguém aponta que os “comedores de alho” estão sendo discriminados, os sentimentos afloram.

A diversão não existe mais? Existe. Ou, ao menos, atende pelo nome de “extravasar”. Como “ninguém é de ferro”, não faltam músicas, bebidas, drogas e pornografia para se extravasar.

Neste ponto, verdade seja descrita: ficamos pasmos com a violência em voga, desconcertados com os maus tratos dos filhos para com os pais e chateados quando conhecidos burlam para não “cumprir com palavras”. Porém, frequentemente, “lutamos” com as consequências e ignoramos as causas (às vezes até as vangloriamos).

Mas nem sempre foi assim, vejamos um exemplo. A canção Viagem foi apresentada em 1972 e pertence ao gênero MPB — lembrando que o P significa “popular” —, originou-se com João de Aquino (1945 – 2022) e foi letrada por Paulo César Pinheiro. Leia-a e ouça-a, na voz de Nelson Gonçalves (1919 – 1998). Hoje a poesia veio ao “nosso” encontro, deixemos ela suscitar bons sentimentos.


Por Eric M. Rabello.



Viagem

(Paulo César Pinheiro & João de Aquino)


Ó tristeza, me desculpe
Estou de malas prontas
Hoje a poesia veio ao meu encontro
Já raiou o dia, vamos viajar


Vamos indo de carona
Na garupa leve, do vento macio
Que vem caminhando
Desde muito longe, lá do fim do mar


Vamos visitar a estrela, da manhã raiada
Que pensei perdida pela madrugada
Mas vai escondida
Querendo brincar


Senta, nessa nuvem clara
Minha poesia, anda, se prepara
Traz uma cantiga
Vamos espalhando música no ar!


Olha quantas aves brancas
Minha poesia, dançam nossa valsa
Pelo céu que um dia
Fez todo bordado de raios de Sol


Ó poesia, me ajude
Vou colher avencas, lírios, rosas, dálias
Pelos campos verdes
Que você batiza de jardins-do-céu
Mas pode ficar tranquila, minha poesia
Pois nós voltaremos numa Estrela-Guia
Num clarão de Lua, quando serenar


Ou talvez até, quem sabe?
Nós só voltaremos no cavalo baio
No alazão da noite
Cujo o nome é Raio, é Raio de Luar!






Notas da editoria:

Imagem da capa: “The Travelling Companions” (1862), por Augustus Leopold Egg (1816 – 1863).




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