Breve expedição musical: dos jingles aos clássicos (via formação de caráter)

Obra "Harmonious", por Patricia Bellerose

O homem que não tem a música dentro de si e que não se emociona com um
concerto de doces acordes é capaz de traições, de conjuras e de rapinas.
William Shakespeare (1564 – 1616)



Na obra Como ouvir e entender música1, Aaron Copland (1900 – 1990) escreveu: “Ouvimos música de acordo com as nossas aptidões variáveis. Mas, sob um certo aspecto, todos nós ouvimos em três planos distintos. À falta de terminologia mais exata, poderíamos chamá-los de: (1) plano sensível, (2) plano expressivo e (3) plano puramente musical”.

Na sequência, Copland (que também era compositor) define o plano sensível como “o plano em que nós ouvimos música sem pensar, sem tomar muita consciência disso. Ligamos o rádio enquanto fazemos outra coisa e tomamos um banho de som (…)”. Analisando o nome atribuído ao segundo plano, o expressivo, torna-se evidente que entramos em um terreno polêmico. No livro, o autor introduz o tópico dizendo que “os compositores gostam de se esquivar a qualquer discussão sobre o lado expressivo da música”, e continua:

“A minha própria opinião é de que toda música tem o seu poder expressivo, algumas mais e outras menos, mas todas têm um certo significado escondido por trás das notas, e esse significado constitui, afinal, o que uma determinada peça está dizendo, ou o que ela pretende dizer. O problema pode ser colocado de uma maneira mais simples perguntando-se: ‘A música tem um significado?’. Ao que a minha resposta seria ‘sim’. E depois: ‘Você pode dizer em um certo número de palavras que significado é esse?’. E aqui a minha resposta seria ‘não’. Aí é que está a dificuldade.

As pessoas de natureza mais simples nunca se contentarão com essa resposta à segunda pergunta. Elas sempre desejam que a música tenha um sentido, e quanto mais concreto, melhor. A música lhes parece tanto mais expressiva quanto lhes represente com mais exatidão um trem, uma tempestade, um funeral ou alguma outra noção conhecida. Essa ideia popular do significado musical — estimulada pelo hábito contemporâneo de comentar a música — deveria ser desencorajada em qualquer circunstância.

(…) Mas seja qual for a opinião do músico profissional, a maioria dos novatos em música gostam de procurar palavras específicas que adaptam às suas reações musicais. É por isso que eles sempre acham Tchaikovsky mais fácil de ‘entender’ do que Beethoven. É mais fácil aplicar uma palavra interpretativa a uma peça de Tchaikovsky do que a uma de Beethoven. Muito mais fácil. Além disso, em relação a Tchaikovsky, cada vez que você ouve novamente uma de suas obras ela lhe diz aproximadamente a mesma coisa, enquanto com Beethoven é bem mais difícil arriscar uma opinião sobre o que ele está dizendo ou querendo dizer. E qualquer músico lhe dirá que é por isso que Beethoven é o maior dos dois. A música que sempre diz a mesma coisa tende necessariamente a gastar mais depressa o seu poder expressivo, enquanto a música cujo significado oscila a cada audição tem as melhores chances de permanecer viva.”

O livro tem como objetivo central atender ao plano puramente musical, o qual pode ser resumido superficialmente por meio de outro excerto: “Além da atração do som e dos sentimentos expressivos que ela transmite, a música existe no plano das próprias notas e de sua manipulação“. Apenas para contextualizar tal tópico, é válido mencionar que nele são reveladas diversas técnicas comumente aplicadas por compositores e desconhecidas por muitos ouvintes. Por exemplo, o livro explica como um autor pode escrever um primeiro tema (trecho) de uma música, depois um segundo e, por fim, usar artimanhas para “soldá-los”, dando a impressão de que não eram partes isoladas.

Com a obra de Copland resenhada, vamos nos aventurar no plano expressivo por nossa própria conta e risco.

Muitos de nós provavelmente já nos “banhamos” na obra Rhapsody in blue, de George Gershwin (1898 – 1937). Desde seu lançamento, em 12 de fevereiro de 1924, ela foi reproduzida em rádios, salas de concertos e serviu como trilha sonora de diversos filmes2, passando, a partir da década de 1980, a ser utilizada até mesmo como jingle da companhia United Airlines3 . É, sem dúvida, a obra mais conhecida de Gershwin. Aqui, alguns poderiam contestar que o livro de Copland visa a apreciação de músicas eruditas, enquanto a “rapsódia azul” de Gershwhin seria um concerto de jazz. Porém, com percepção pouco aguçada já é possível notar que a obra combina elementos da música erudita dentro de uma composição jazzística. Em uma gravação de 29 de junho de 2003, intitulada A Gershwin night4, a Orquestra Filarmônica de Berlim e os jazzistas Marcus Roberts (piano), Jason Marsalis (bateria) e Roland Guerin (baixo)5 se reuniram sob a batuta de Seiji Ozawa; evidentemente, Rhapsody in blue fez parte do repertório, mas sob uma performance surpreendente. Nesta apresentação, o saxofone, que não é um instrumento regular na formação de orquestras de músicas eruditas, vigora na seção dos metais (aos 8min e 20s), ao passo que instrumentos de percussão comuns à Filarmônica, como o tímpano, cedem lugar à bateria de Jason (filho mais novo de Ellis Marsalis). Mesmo assim, ao escutar diretamente o trecho que vai dos 14min e 45s aos 15min e 40s, muitos poderão dizer: “Trata-se de uma música clássica”, sendo que, considerando a passagem por volta dos 19min e 44s, por exemplo, provavelmente já não estariam tão convictos disso.

Mas poderíamos ter seguido o caminho inverso, ou seja, partir de uma música erudita com elementos do jazz? A resposta é: “sim”. O jazz influenciou fortemente a música erudita contemporânea. Apenas para citar alguns exemplos, Stravinsky compôs um ragtime6, Milhaud criou uma fuga jazzística no balé La création du monde7, e a sonata para violino de Ravel contém um movimento de blues8 .

Seja como for, erudita ou popular, a música é capaz de acender uma das principais características humanas: a subjetividade9. É inequívoco que a música seja capaz de elevar (ou rebaixar) nosso estado de espírito. No livro Música, inteligência e personalidade, o autor, Dr. Minh Dung Nghiem, escreve:

“Na Europa, desde o fim da Idade Média, sabia-se que o rufo do tambor, ofuscando a consciência dos homens, podia dissipar o medo, fazer esquecer o sofrimento e o cansaço, e unir a tropa.

(…) Os sons, os ruídos e as músicas foram sistematicamente estudados em laboratório, como no Harvard Fatigue Laboratory, por exemplo. E se descobriu que eles podem produzir angústia, tristeza, alegria, sentimentos de perseguição, reações de pânico, e mesmo reações orgânicas como náusea e vertigem, ou estado de depressão com tendência suicida.”10

Uma inteligência artificial até pode combinar formosas notas musicais e produzir determinadas harmonias; mesmo, porém, que o resultado fosse muito além daquilo que se espera de uma IA, a obra teria tanto peso sentimental para a máquina que a criou quanto a alma de um grão de areia para uma balança.

Infelizmente, vivemos um momento em que não há mais educação musical nas escolas, os cursos extracurriculares da moda girando em torno apenas de aspectos técnicos: as crianças, desde cedo, aprendem a lidar com finanças, e não com emoções; nosso foco é o sucesso profissional e financeiro, e todo o resto é apenas adorno. Contudo, não há como a música abandonar as nossas vidas; podemos, quando muito, apenas colocá-la no plano do acaso e do obsoleto: qualquer uma serve, não é necessário lapidá-la e, obviamente, esta será bruta, por consequência, e só poderá acender o lado animalesco em nós (o mesmo valendo também para outras artes).

Ainda assim, muitos ficam pasmos ao reparar que a vertiginosa decadência de caráter em nossa sociedade acontece paralelamente aos velozes avanços tecnológicos que alcançamos. Não sei se, para estes, recomendo Bach ou Justin Bieber.


Por Eric M. Rabello


Nota:

  1. Copland, Aaron. Como ouvir e entender música. 1a ed. São Paulo: É Realizações, 2017. Subir
  2. Como Manhattan (1979), dirigido por Woody Allen, e The great Gatsby (1974), dirigido por Jack Clayton. Subir
  3. Cf. https://youtu.be/E3Gak1JOito, https://youtu.be/N2Qdq86UAzk, https://youtu.be/sYO3wBlxG1g e https://youtu.be/C20a2aoyEsU (instruções de segurança, exibido em vôos operados por aeronaves Boeing 787). Subir
  4. https://amzn.to/43linDp. Subir
  5. O Marcus Robert Trio. Subir
  6. https://youtu.be/nMuhW4cXiJU. Subir
  7. https://youtu.be/DB8e_V_4b2s. Subir
  8. https://youtu.be/pB7lWRKGmFE. Subir
  9. Um exemplo interessante é outra composição jazzística de George Gershwin, Um americano em Paris, escrita em 1928 na intenção de provocar em seus ouvintes as sensações que um turista, caminhando pela sonora Paris da década de 1920, teria. A ideia fica clara desde o início da composição, no qual é feito o uso de buzinas e pode-se ouvir claramente trotes de cavalos. Confira (neste vídeo: https://youtu.be/AfPryxLJaVk) o trecho entre 15min e 29s e 16min e 50s, e depois responda: neste intervalo, Gershwin buscou exprimir o cansaço produzido após dias fora de casa, ou tentou manifestar a melancolia gerada pelo inevitável retorno? Já nos minutos subsequentes, é enunciada uma retomada de ânimo ou o desejo de se aproveitar os últimos momentos antes do regresso? Felizmente, não há resposta certa para nenhuma dessas perguntas. Subir
  10. Nghiem, Minh Dung. Música, inteligência e personalidade: o comportamento do homem em função da manipulação cerebral. 1a ed. Campinas: VIDE Editorial, 2019. Capítulo VI. Subir

Nota da editoria:

Imagem da capa: “Harmonious”, de Patricia Bellerose.




Rhapsody in blue: Orquestra Filarmônica de Berlim e Marcus Robert Trio, conduzidos por Seiji Ozawa Subir


8min e 20s: saxofone vigora na seção dos metais
10min e 40s: Jason Marsalis (baterista) surpreende-se com Marcus Robert (pianista)
14min e 45s aos 15min e 40s: trecho com elementos da música erudita
19min e 44s: clara combinação de elementos do jazz com os da música clássica




Saiba mais. Ouça o programa Pauta Musical transmitido pela Rádio Câmara, em 7 de dezembro de 2019:


Rhapsody in Blue:

Apresentação de Ana Lúcia Andrade. Filarmônica de Los Angeles, sob regência e piano solo de Leonard Bernstein.


Um americano em Paris:

Apresentação de Ana Lúcia Andrade. Filarmônica de Nova York e Sinfônica de Columbia, regidas por Leonard Bernstein


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