“A justiça nunca será feita até aqueles que não são afetados se indignarem como os que são.”
Benjamin Franklin (1706 – 1790)
As pessoas tendem a pensar em um sistema de justiça justo como uma das pedras angulares de uma sociedade livre e florescente. No entanto, a maioria de nós está resignada com a ideia de que ela só pode ser entregue pelas mãos do Estado. Em vez de apenas aceitar o status quo, talvez devêssemos questionar se os Estados são administradores apropriados da justiça e, em vez disso, considerar se uma abordagem livre do Estado ou libertária da justiça poderia funcionar.
A palavra “justiça” vem do latim jus, que significa “direito” ou “lei”. O Oxford English Dictionary define a pessoa “justa” como aquela que “faz o que é moralmente certo” e está disposta a “dar a todos o que lhe é devido”. Enquanto isso, a maioria das pessoas concebe o Estado como uma organização soberana que exerce controle sobre um território definido sem interferência de seus cidadãos e em nome deles. Através de sua soberania, estabelece suas próprias agendas e, por meio de seu controle, é livre para reunir as pessoas e recursos dentro de seu território para realizar essas agendas.
Independentemente do tipo de justiça que um Estado pretende proporcionar, é importante entender que implícito em qualquer conceito de Estado está sua necessidade de ser a única entidade que usa a agressão dentro de seu território. Por agressão, refiro-me ao uso não provocado da força, ou à ameaça da mesma, sobre qualquer pessoa que resista às suas atividades. Esse monopólio é fundamental; pois assim que prevalecem os agressores opositores (pense em criminosos, invasores ou revolucionários), algum aspecto de soberania e controle — e, portanto, de Estado — se perde. Embora o uso da força para se defender ou recuperar itens roubados possa ser perfeitamente consistente com um resultado justo, usar a agressão quando não há ilícito prévio — digamos, quando o Estado força o pagamento de impostos ou obriga o uso de seu sistema jurídico — mostra ser uma fonte de decreto autocrático, colocando-se acima da necessidade de estar obrigado a fazer o que é certo e justo.
Com uma abordagem libertária da justiça, não haveria autoridade estatal dominante a quem se deva apelar. Em vez disso, várias opções contratadas privadamente poderiam existir para validar, aplicar e financiar a reivindicação de justiça de qualquer indivíduo.
Para ilustrar como isso poderia funcionar, vamos supor que João tenha sido atacado e roubado por Luís. João poderia procurar financiar quaisquer serviços de validação e execução necessários, submetendo sua reivindicação a uma seguradora com a qual ele tem um contrato de seguro previamente arranjado especificamente projetado para financiar disputas legais quando uma violação de sua pessoa e propriedade ocorreu.
Se a reivindicação de João for direta e bem evidenciada, a seguradora pode simplesmente cumpri-la imediatamente com um pagamento em dinheiro. Se o sinistro for mais complexo, envolver quantias significativas ou for difícil de executar, a seguradora pode primeiro exigir uma sentença de um especialista ou juiz jurídico independente e bem conceituado.
Em um mercado aberto para juízes, aqueles que constroem reputações por qualidades demandadas, como objetividade, justiça, previsibilidade, rapidez e acessibilidade, tenderão a ser selecionados em detrimento daqueles menos capazes de evidenciar tais características. Essa preferência de seleção também seria um fator importante para influenciar quais formas de jurisprudência predominam ao longo do tempo (ver Fundamentos Jurídicos de uma Sociedade Livre, de Stephan Kinsella, para um tratamento mais exaustivo dos fundamentos dos direitos libertários e da teoria da punição).
Se o juiz escolhido decidir contra João, pode haver implicações estabelecidas no contrato de seguro que o penalizem ou, pelo menos, limitem seu incentivo a fazer reivindicações infundadas no futuro. No entanto, se o juiz decidir a favor de João, a seguradora precisará pagar quaisquer danos devidos a João e solicitar um esforço de execução para recuperar seus custos, além de executar qualquer punição permitida na sentença contra Luís. O esforço de execução poderia, portanto, assumir a forma de apreender ativos financeiros, apreender ativos reais e, potencialmente, aplicar um grau de punição física a Luís.
A seguradora de João provavelmente optaria por contratar os serviços de uma agência de execução para juntar suas capacidades especializadas ao esforço de execução, maximizando a chance de sucesso e minimizando os danos colaterais, o que poderia desencadear contra-reclamações dispendiosas.
Caso Luís opte por resistir à tentativa de execução, ele enfrentará os recursos e capacidades de uma agência de execução especializada, com o apoio financeiro de uma seguradora e a validação independente de uma decisão de um juiz amplamente reconhecido. A reputação e o acesso a recursos de Luís provavelmente se deteriorariam rapidamente se ele optasse por resistir a tal combinação, a menos que pudesse construir sua própria reconvenção com um julgamento independente confiável e solicitar seus próprios serviços de execução e segurança.
Tais resistências e resultados de confronto provavelmente seriam raros em um sistema de justiça libertário, dada a maneira como as pessoas e organizações tendem a preferir processos de resolução pré-acordados em suas negociações privadas para remover a incerteza e o risco caso surjam disputas. É improvável que seguradoras, juízes e executores queiram entrar em conflito direto com seus pares e concorrentes toda vez que duas partes fizerem reivindicações conflitantes uma contra a outra. O conflito físico tende a ser caro e geralmente não beneficia nenhum dos lados. Muito provavelmente, as seguradoras terão protocolos previamente determinados que seguem ao lidar com casos em que os respectivos clientes fazem reivindicações conflitantes uns contra os outros, como usar juízes comumente acordados. Os executores só podem querer assumir contratos quando um juiz respeitável tiver proferido uma decisão não contestada e uma seguradora bem estabelecida estiver financiando a operação de execução. Tais medidas devem, em geral, assegurar que, quando os pedidos são validados, são rapidamente aplicados.
Se Luís for considerado culpado e seus bens forem insuficientes para pagar tudo o que é devido, uma obrigação de dívida seria estabelecida de tal forma que João ou mais provavelmente sua seguradora seria capaz de reivindicar ativos futuros de Luís até que a dívida seja paga.
Seja devido a dívidas pendentes ou devido à gravidade do crime cometido, Luís pode não ser capaz de manter relações e contratos comunitários importantes, como aqueles com proprietários, empregadores, bancos e seguradoras. Isso poderia resultar em Luís sendo forçado a sair da maioria das propriedades privadas e impedido de entrar nelas. Com poucas outras opções, ele pode ficar confinado a viver em um lugar de refúgio onde trabalha para pagar suas despesas de vida e pagar dívidas pendentes até que a sociedade mais ampla esteja pronta para se envolver com ele novamente. Tal refúgio seria, portanto, o oposto de uma prisão, pois o infrator não seria condenado ali por decreto; em vez disso, ele simplesmente não seria aceito em nenhum outro lugar, fazendo de um refúgio sua melhor opção. A razão pela qual qualquer um gostaria de estabelecer um refúgio, além do altruísmo, seria obter acesso ao trabalho de baixo custo de criminosos condenados como Luís que, de outra forma, poderiam ser trabalhadores produtivos.
Sob um sistema de justiça libertário, manter contratos e relacionamentos com instituições-chave seria fundamental para poder funcionar de forma geral na sociedade. Assim como Luís seria confrontado com uma vida muito restrita por um período de tempo se condenado por atacar e roubar João, também João poderia ter acabado no mesmo tipo de vida se tivesse escolhido resolver as coisas por conta própria. Por exemplo, se João tivesse simplesmente decidido invadir a propriedade e os bens de Luís para recuperar o que ele achava que devia sem um julgamento independente e reconhecido e um esforço de execução, então João poderia facilmente parecer estar agindo como um agressor criminoso e, consequentemente, perder sua posição com as contrapartes principais necessárias para manter sua vida e circunstâncias.
Tendo esboçado brevemente uma abordagem libertária para um sistema de justiça, podemos agora perguntar por que isso seria melhor do que os vários sistemas de justiça estatais em que vivemos atualmente. A melhor maneira de entender isso seria como abordamos qualquer solução de livre mercado versus um monopólio imposto pela ameaça da violência. Ou seja, poderíamos esperar que a concorrência e o cálculo econômico irrestrito garantissem que o custo da justiça fosse reduzido e, ao mesmo tempo, maximizassem a qualidade da justiça.
Isso poderia assumir a forma de melhor acesso à justiça para os menos ricos, menos criminalidade sem vítimas, entrega mais rápida de justiça, resultados mais previsíveis e resultados mais consistentes com o que é percebido como justo e moralmente correto. Particularmente importante é a remoção do conceito inerentemente falho de ter o Estado como árbitro final dos conflitos entre ele e o povo dentro de seu domínio, uma construção sempre fadada a favorecer o Estado em detrimento do povo e ser uma grande fonte de corrupção e tirania.
Devemos terminar observando que um sistema de justiça libertário não garantirá justiça perfeita o tempo todo. Isso não é esperado de um sistema de justiça estatal e certamente nunca foi entregue. No entanto, o que podemos esperar é um processo que funcione para otimizar e melhorar constantemente o sistema de justiça, com inovações úteis ganhando terreno e processos deficientes sendo descartados. Certamente essa perspectiva é melhor do que a que temos. Certamente, devemos a nós mesmos pensar mais sobre alcançar a justiça fora do Estado.
Por Rowan Parchi.
Publicado em 23 de abril de 2024 no website do Instituto Rothbard Brasil.
Para acessar o artigo original, em inglês, clique aqui.
Notas da editoria:
Imagem de capa: “O Julgamento de Salomão” (1649), de Nicolas Poussin (1594 – 1665).