“A consciência é o melhor livro de moral e o que menos se consulta.”,
Blaise Pascal (1623 – 1662): filósofo, físico, matemático e escritor francês.
Ao colocar em prática suas experiências, demonstrando como as pessoas são capazes de, sob as ordens de uma autoridade constituída, cometer atos que confrontam com seus próprios princípios, talvez não tenha ficado suficientemente claro, para Stanley Milgram, o que motivava tal cega obediência.
As experiências do professor estão narradas no livro “Obediência à Autoridade”, de 1973. Ele descreve assim o procedimento:
“Duas pessoas chegam a um laboratório de psicologia para participar de um estudo sobre memória e aprendizado. Uma das pessoas é designada como “professor” e outra como “aluno”. O responsável pela experiência explica que o estudo está interessado nos efeitos da punição no aprendizado. O aluno é levado a uma sala, senta-se numa cadeira, seus braços amarrados para evitar movimentos excessivos, e um eletrodo é ligado ao seu punho. Ele recebe a informação de que deve decorar uma lista de pares de palavras; sempre que cometer um erro, receberá um choque elétrico de intensidade progressivamente mais forte.
O foco real da experiência é o professor. Depois de observar o aluno sendo amarrado na cadeira, ele é levado à sala principal de testes e senta-se diante de um gerador de choques elétricos. O que logo lhe chama a atenção é uma série de trinta chaves, dispostas horizontalmente, que comandam a aplicação de choques numa faixa de 15 a 450 volts a intervalos de 15 volts. Há também designações escritas, que vão de Choque Fraco a Perigo – Choque Forte. O professor recebe a informação de que deve aplicar o teste de aprendizado à pessoa que está na outra sala. Quando o aluno responder corretamente, o professor pula para o item seguinte: quando a outra pessoa der uma resposta errada, o professor aplica-lhe um choque elétrico. Ele deve começar com o choque mais fraco (15 volts) e aumentar a intensidade cada vez que o outro errar, aplicando choques de 30 volts, 45 volts e assim por diante.
O “professor” é realmente uma pessoa inocente que foi ao laboratório participar da experiência. O aluno, ou a vítima, é um ator, e na verdade não recebe choque algum. O interesse da experiência é ver até que ponto uma pessoa prossegue numa situação concreta e mensurável na qual recebe uma ordem para infligir dor progressivamente maior a uma vítima que protesta a cada vez que recebe o castigo.”
O que ocorreu, em boa parte dos casos, é que os voluntários, mesmo sob os protestos do ator, e mesmo crendo que poderia haver algum perigo à saúde deste falso aluno, em sua maioria, seguiram aplicando os choques até o nível mais alto da chave elétrica. Ficou evidente, com a experiência, que, ainda que a situação fosse altamente desagradável para a maioria deles, e ainda que a aplicação desses choques ferisse seus princípios, havia algo que lhes fazia continuar com a experiência: o poder da autoridade, personalizada na figura do pesquisador que acompanhava os trabalhos.
Muitas conclusões podem ser tiradas dessas experiências. No entanto, há uma que pode ser destacada e, na verdade, se foi percebida pelo Dr. Milgram, foi apenas ressaltada muito discretamente por ele. Não era apenas a autoridade do pesquisador que subjugava os voluntários a agirem contra suas consciências primordiais, mas havia uma outra, até mesmo superior, da qual ele era apenas uma personificação: a ciência.
Quando o ideal científico tomou conta da mente ocidental e tornou-se o tesouro maior da civilização, tudo, em seu nome, passou a ser permitido. Se é a ciência quem traz tantos bens para a sociedade, se ela possui a primazia do conhecimento e se ela é a autoridade suprema em todos os assuntos, qualquer ato que for cometido em favor de seu desenvolvimento é, na mente desse homem moderno, um bem para a humanidade.
Jorge Boaventura, em seu livro “O Ocidente Traído”, detectando essa nova deusa que se formara na imaginação ocidental, fez esta análise:
“Abalada que fora a fé religiosa, desprestigiada a metafísica e, cada vez mais, difundida uma visão materialista da vida, onde poderia ser buscada a “muleta ética” tão urgentemente necessitada, senão na ciência, o novo ídolo que surgira?”
Nas experiências de Stanley Milgram fica claro que havia na mente daqueles participantes que, se todo aquele processo, ainda que doloroso, estivesse sendo feito em favor do progresso científico, eventuais perdas seriam plenamente justificadas e as responsabilidades pessoais amenizadas, se não anuladas.
Tamanha sujeição parece estar bem figurada nas palavras de um dos voluntários: Morris Braveman, um assistente social de trinta e dois anos. Após alcançar os níveis mais altos de choque na vítima, ainda que não sem constrangimento, relutância e até compaixão, chegando a se oferecer para trocar de lugar com o ator, ao ser inquirido sobre as razões de ter ido tão longe na experiência, simplesmente fez esta afirmação:
“Sou uma pessoa boa, eu acho, e ali machucando alguém, e numa situação que parecia má… e pelo interesse da ciência vai-se em frente.”
Uma das motivações para a realização daquela experiência, conforme dito pelo próprio Dr. Milgram, foi o chamado fator Eichmann. Adolf Otto Eichmann foi um tenente-coronel da SS nazista. Na verdade, porém, não passava de um burocrata e foi o responsável pela logística do extermínio de milhares de pessoas pelo governo nazista. Hanna Arendt defendeu exatamente essa descrição de Eichmann, porém muitos chegaram a escarnecê-la, dizendo que um homem que faz o que fez o alemão não pode ser um simples burocrata, mas deve possuir uma personalidade brutal, alterada, sádica.
As experiências de Stanley Milgram, porém, mostram que pessoas que não possuem as características típicas de um sádico podem, de alguma maneira, ser executores de ações que causem danos a outros, principalmente se cobertos sob o manto da obediência à autoridade.
E não há, para o homem moderno, melhor e maior autoridade do que a ciência. Todos os movimentos totalitários, que usaram de homens comuns para a implementação de suas autoridades, acima dos líderes carismáticos e autoritários, houve sempre um fundamento científico que os justificava. Desde os estudos sociais que alicerçaram a Revolução Francesa, passando pelas pesquisas eugenistas que fortaleceram o ideal ariano nazista, até os trabalhos sobre economia que basearam a dialética marxista, sem contar as ideias evolucionistas que já dominavam o pensamento europeu, tudo serviu para a implementação e desenvolvimento dos processos revolucionários, com sua conhecida sanguinolência e desprezo em relação ao indivíduo.
Sem o endeusamento da ciência, dificilmente esses movimentos teriam a adesão que tiveram. Foram milhões de homens e mulheres comuns, pessoas de vida ordinária, que apoiaram tamanhas atrocidades simplesmente porque acreditavam que o que estava sendo feito pelas autoridades, ainda que fosse de encontro com suas consciências, era justificado pela convicção de que tudo era praticado em favor de um bem maior, com as bênçãos da sábia deusa.
Ainda que muitos digam que reconhecem que há uma autoridade maior que a ciência, não se pode ignorar que no imaginário de toda uma civilização foi introduzida uma ideia: a de que, se vivemos uma vida mais confortável, mais segura e mais longeva, tudo isso deve-se ao progresso científico que nos ofereceu tantos dons. Assim, é quase impossível não sentir-se devedor dessa benfeitora que nos proporciona tantas benesses.
Se a ciência é tão dadivosa, se não há em quem confiar mais, se dela emanam as verdades que explicam a existência e solucionam os problemas humanos, o que seriam, diante disso, algumas perdas e algum sofrimento?
O mundo moderno está de joelhos diante dessa deusa, que, na verdade, despreza a todos indistintamente.
Escrito por Fábio Blanco.
Conheça o website do autor, acesse: fabioblanco.com.br.
Publicado originalmente pelo website Mídia Sem Máscara, em 2 de fevereiro de 2013.
Nota do editor:
A imagem associada a esta postagem ilustra recorte da obra: “Jean-Baptiste Colbert, apresentando os membros da Academia Real da Ciência para Louis XIV.”, criada pelo pintor e escritor francês Henri Testelin (1616 – 1695).