“Creio no riso e nas lágrimas como antídotos contra o ódio e o terror.”,
Charles Chaplin (1889 – 1977).
Certa vez, disse Chaplin que, em um filme, o importante não é a realidade, mas o que dela possa extrair a imaginação. Ousadamente, permito-me discordar, ou melhor, complementar o pensamento do gênio britânico que, acredito, em sua inocência de quem viveu tempos de um bom gosto que parecia inesgotável, não imaginava os rumos que o cinema moderno viria a tomar, em sua mais completa distorção tanto da realidade como da fantasia e da criatividade.
Ao sentar em frente a uma tela, não esperamos apenas que nossa imaginação seja levada e transformada por aquela história e seus personagens, mas também que todo ritual cinematográfico, inconscientemente, nos tome num todo e ganhe, além de nossa atenção, nosso coração. A realidade, como quis dizer o lendário cineasta, não assume compromissos quando o assunto é cinema, é verdade. Que ela seja esquecida por algumas horas para que o espectador navegue em mais distantes oceanos de percepção e magia — no mais lúdico sentido da palavra —, já que o cinema, como toda arte em seu papel original (papel este já quase esquecido), tem a nobre missão de elevar, engrandecer e aliviar o espírito, acreditando sempre que tudo é permitido se o bom gosto for a régua.
Porém, quando dentro deste entretenimento de escape e alívio a realidade encontra formas de expressão quase perfeitas, a imaginação ganha subsídios para uma viagem além de um simples passatempo, abrindo espaço à reflexão mais profunda e aos sentimentos mais puros. É nessa busca por um espelho mais fiel da vida através do encantamento do cinema que surge, em 1979, Kramer vs. Kramer.
O filme do diretor e roteirista Robert Benton acompanha a vida do casal Ted e Joanna Kramer, que enfrenta uma crise no casamento motivada pela ausência e excesso de trabalho do marido e pela consequente indiferença da esposa, tudo sendo refletido no desenvolvimento do filho pequeno.
O roteiro aparentemente simples e a fotografia que se vale de uma paleta de cores propositalmente soturna, para demonstrar a tristeza daquele universo, não teriam hoje lugar em nossas salas invadidas pelo excesso de CGI e pela pressa, em que tudo acontece rapidamente e se desfecha sem maiores explicações. Em Kramer vs. Kramer, vemos o exato contrário. Acompanhamos toda uma série de alterações na personalidade dos bem trabalhados personagens, sempre de maneira gradual, paciente, como se transformam as pessoas no mundo real. Vemos, por exemplo, o pai, Ted (Dustin Hoffman), sair do típico publicitário workaholic americano para um “dono de casa” atarefado, com a vida agitada, cheia de acidentes, imprevistos e das carências de uma criança que tem de se acostumar à falta da mãe. Essa experiência o aproxima de modo emocionante do filho e faz com que o dia a dia se torne cada vez mais agradável. Do mesmo modo, na metade final, quando Joanna reaparece após o abandono da família, vemos seu arrependimento cena a cena, conforme os acontecimentos se desenrolam, em um trabalho magistral de Meryl Streep. Tudo isso converge para, pacientemente, atingir o clímax que dá origem ao título, quando o casal finalmente se encontra em um conturbado julgamento que faz do filme, talvez, o maior do consagrado — mas já não usual — “gênero tribunal”, explorado com sucesso no passado em clássicos como O sol é para todos (“To kill a mockingbird”, 1962), com Gregory Peck, e Testemunha de acusação (“Witness for the prosecution”, 1957), com Tyrone Power e Marlene Dietrich.
Não apenas um sucesso de crítica e público, Kramer vs. Kramer conseguiu o feito de abocanhar cinco estatuetas do Oscar em um tempo em que a premiação ainda conservava, em sua essência, resquícios da Era de Ouro do cinema, que, mesmo já ultrapassada pelos anos, mantinha-se nítida e relevante aos olhos dos membros da Academia. O filme de Robert Benton venceu nas categorias de melhor ator (com um ainda jovem mas já maduro Dustin Hoffman), melhor atriz coadjuvante (para uma ascendente Meryl Streep), melhor roteiro adaptado, melhor fotografia e melhor filme, além da indicação do mais jovem ator já realizada: a de Justin Henry, que brilhantemente interpreta o filho Billy.
Com 1h e 45min de duração, o filme consegue, sem se tornar piegas ou maçante, levar o público para dentro das mazelas de uma família com seus problemas e disfunções. Fica, após o final, a sensação de que Robert Benton não pretende deixar lições, nem apresentar, em seu filme, heróis e vilões, mas nos fazer sentir mais próximos da tal realidade exatamente ao nos apresentar personagens como que nus, levando-nos a amá-los e odiá-los conforme se transformam. É como se os próprios Ted e Joanna nos machucassem e pedissem perdão pessoalmente, na sala de nossas casas.
Ao bater do martelo do juiz interpretado por Howland Chamberlain, que interrompe o julgamento antes da cena final, só pude lamentar que Charles Chaplin tivesse falecido dois anos antes do lançamento de Kramer vs. Kramer. Imagino qual teria sido a reação do pai do cinema mudo ao ver a evolução de sua arte silenciosa, agora explicitada em diálogos tão bem construídos. Ao mesmo tempo, fico aliviado em saber que se foi antes da era da distorção na qual nos encontramos — será que, hoje, repensaria aquela sua afirmação inicial?
Escrito por Douglas Alfini Jr.
O autor é escritor e cinéfilo.
Conheça a obra: “Crônicas do Invisível”,
recentemente lançada pelo autor deste artigo.
Elenco de Kramer vs. Kramer
Robert Benton
(Diretor e roteirista)
Dustin Hoffman
(Ted, o pai)
Meryl Streep
(Joanna, mãe)
Justin Henry
(Billy, filho)
Howland Chamberlain
(Juiz)