“O louco não é um homem que perdeu a razão. O louco é um homem que perdeu tudo, exceto a razão.”,
G. K. Chesterton (1874 – 1936).
Nash 1, o matemático nem terminou de convidar Bomfim 2 para um chá da tarde e já obteve uma resposta requintada: “Desde que possamos encerrá-lo após o anoitecer, eu aceito! Assim, sentaremos à beira da tarde e veremos a noite que plantaremos” 3. O poeta ainda completou: “Gosto de despentear os cabelos da noite, para depois uni-los em tranças úmidas de orvalho com fivelas de pirilampos” 4. Na verdade, Nash já previa que seu pedido seria aceito, em muitas outras ocasiões seu amigo havia lhe dito: “Em sua casa, no alto daquele rochedo, eu abriria uma janela sempre que precisasse colher um poema” 5!
O encontro levou meses para ocorrer, porém, logo no início daquela visita, Bomfim ficou perplexo – notou que a mesa e a cadeira nas quais Nash trabalhava estavam voltadas para o lado oposto ao da janela, além do mais, a ventana estava encoberta por uma cortina espessa e bicolor (amarela do lado direito e bordô do lado esquerdo).
Diante daquela cena, o visitante não se conteve, e mesmo prevendo que o morador teria argumentos extremamente lógicos, provocou. Bomfim apontou o dedo indicador para a cortina e disse: “Assim você realmente não perderá sua concentração; perderá o seu norte”.
Perante uma coincidência descomunal, Nash apontou para o topo de cada estante e de cada cantoneira que encobriam as paredes daquele escritório octogonal, mostrando que cada seção era nomeada pela sigla de um ponto cardeal ou colateral. O matemático ainda explicou que os objetos predominantemente claros eram deixados a leste (analogamente com a nascente do Sol), enquanto os mais escuros eram posicionados a oeste. Em seguida, Nash, que trajava vestimentas pretas, contornou seu amigo com indumentárias claras e prosseguiu a conversa.
Nada mais se sabe sobre aquela visita, exceto que nos dois ou três dias posteriores o matemático não fez cálculos, e o poeta não escreveu poemas.
O fictício encontro entre o poeta e o matemático permite revelar o âmago de um dos muitos pensamentos descritos na obra Ortodoxia, na qual, logo nas primeiras páginas, o autor, G. K. Chesterton (1874 – 1936), afirma: “O poeta apenas pede para pôr a cabeça nos céus. O lógico é que procura pôr os céus dentro de sua cabeça” 6. Contudo, o livro, que busca expor as contradições da natureza humana, não ataca a lógica, apenas alerta que “O louco não é um homem que perdeu a razão. O louco é um homem que perdeu tudo, exceto a razão” 7.
Talvez, aqueles que nunca tenham lido Ortodoxia e que jamais tenham discutido com loucos discordem de Chesterton, pois pessoas sãs, quando debatem com maníacos, comumente levam a pior e desvendam os fatores da derrota. Causas que também são documentadas pelo escritor inglês.
“A mente dele [o louco] move muito mais rápido por não se atrapalhar com coisas que costumam acompanhar o bom juízo. Ele não é embaraçado pelo senso de humor ou pela caridade, ou pelas tolas certezas das experiências. Ele é muito mais lógico por perder certos afetos da sanidade” 8.
Agora, deixemos de lado os cálculos e as poesias, para considerarmos genericamente todas as possibilidades inerentes da vida humana.
De modo bastante sumário, podemos categorizar todos os nossos esforços em quatro tipos: artísticos, científicos (no qual, incluiremos o “ramo” tecnológico), políticos e credos (crenças das quais não devem ser limitadas por religiões 9). Obviamente, assim como somente os pontos cardeais não sinalizam todas as direções possíveis de modo preciso, nossas quatro categorias também não explicitam pontualmente todas as nossas atividades, mas ambos os conceitos oferecem “um norte”. Além do mais, algumas pautas são neutras. Por exemplo: quando focamos em nossas finanças (pauta econômica), o objetivo poderá ser a compra de um aparato tecnológico, um livro religioso ou, talvez, um ingresso para uma peça teatral. O valor do dinheiro não está no próprio dinheiro, salvas exceções paradoxais – por meio de uma moeda muito antiga não é possível pagar uma “conta de luz”, mas é possível vendê-la devido ao valor histórico!
E entretenimento, é catalogável como “atividade neutra”? Na realidade, assim como não precisamos de uma bússola para chegar onde estamos, não precisamos, neste caso, “catalogar” entretenimento. Explico. Quando fazemos um curso profissionalizante (seja de administração de empresas ou de mecânica dos fluidos), almejamos adquirir uma qualificação; uma vez especializados, desejamos obter ganhos financeiros; em posse de dinheiro aspiramos a, por exemplo, adquirir um automóvel para nos deslocarmos com maior rapidez e mais conforto, e assim indeterminadamente. Mas, quando pegamos um baralho e jogamos paciência, o nosso único objetivo é “jogar paciência”, ou seja, desejamos apenas “passar o tempo” 10.
Entretanto, antes de classificar entretenimento como algo inútil, voltemos a G. K. Chesterton. Ainda em Ortodoxia, o autor afirma que os loucos são incapazes de executar ações sem metas. “Assobiar andando por aí, golpear o capim com uma bengala, bater os calcanhares no chão ou esfregar as mãos” 11 são coisas apenas para homens sensatos! Elucidando. Um louco que acreditasse que todos estão conspirando contra ele, possivelmente, seria incapaz de observar passivamente alguém esfregando as mãos ou golpeando um gramado, pois iria acreditar que tais atitudes fossem sinas para que outras pessoas, por exemplo, devam atacá-lo.
Hoje, nas grandes cidades, é notável que muitas crianças não possam brincar com bolas, mas precisem frequentar cursos de futebol; ou não possam usufruir de uma piscina no próprio condomínio, sem que haja um professor de natação; brinquedos com efeitos sonoros e luminosos também não são admitidos se os sons não ensinarem outros idiomas e se as luzes não piscarem com base em algum algoritmo que ensine matemática! Contudo, é evidente que entre golpear capim e jogar futebol existem fortes diferenças: o segundo requer técnica, cooperação mútua e preparo físico. No entanto, lembre-se que nossas quatro categorias (artes, políticas, ciências/tecnologias e crenças) são extremamente sumarizadas. Mesmo assim, se essas atividades requerem aulas técnicas, quais seriam realmente do tipo “passatempo”? Além do mais, é válido mencionar que aqui a criança é a vítima, portanto, a origem do problema está no adulto.
Qualquer excesso faz mal ou, como diria Olavo de Carvalho, “comer brócolis faz bem; comer somente brócolis faz mal”! Analogamente, um sacerdote que não tenha senso administrativo e político poderá encontrar dificuldades para gerenciar seu templo; enquanto, um administrador de empresas que seja dotado de grande racionalidade e que sofra de TOC não poderá ser salvo pela razão, que é a causa raiz do problema, mas poderá ser recuperado pela fé. Mesmo assim, é claro que um sacerdote passará a maior parte do tempo envolvido com teologia, enquanto um gestor se envolverá mais com processos administrativos e políticos. No entanto, até mesmo uma perfeita divisão não basta.
Caso um padre divida igualmente seu tempo entre celebrar missas e apresentar shows de Heavy Metal, ele certamente não será um bom profissional em uma, ou em ambas as atividades. Entre as ações de cada um de nós, espera-se uma certa compatibilidade, ou em outras palavras, ininterruptamente exige-se uma “filosofia de vida”. Sendo que filosofia transcende cursos universitários e é aperfeiçoada durante toda a vida.
Todavia, existem algumas atividades que exigem muita lógica e pouca experiência de vida. Talvez, um programador de computadores seja capaz de, solitariamente, especificar um minucioso algoritmo que descreva como jogar pôquer, para, depois, ainda sozinho, converter tais regras em um belo jogo eletrônico. Porém, este mesmo profissional poderá perder uma partida real pela sua incapacidade de perceber os blefes de seus adversários. Este é o motivo pelo qual o filósofo Olavo de Carvalho, em algumas ocasiões, proferiu: “existem matemáticos prodígios, mas não existem filósofos prodígios”. Ciências humanas exigem continuamente mergulhar no mundo, retornar à superfície e avaliar tudo o que foi profundamente vivenciado; ciências exatas exigem que o indivíduo mergulhe veemente para dentro de si próprio.
Atualmente é evidente que evoluímos tecnicamente, o que é ótimo. Das grandes aeronaves aos nossos pequenos automóveis, temos “algoritmos” que contribuem com a nossa segurança e o nosso conforto, ou dos grandes laboratórios clínicos aos nossos domésticos medidores de pressão arterial, temos a ciência e a tecnologia como grandes aliadas. Por outro lado, é claro que progredimos pouco nas ciências humanas. E pior, parece que muitos veem nas tecnologias e no “mundo empírico” uma futura possibilidade de eliminar muitos (ou todos) os sofrimentos humanos.
Porém, assim como é inerente da água não ter forma própria, o sofrimento é inerente ao ser humano. É ótimo que existam vacinas, antibióticos e aspirinas, mas seres humanos transcendem os problemas físicos. Um poderosíssimo computador (mesmo quando dotado de inteligência artificial) não sofre, pois não reconhece o seu próprio ser, ao contrário de nós, que somos conscientes de nossas próprias existências, e, portanto, padecemos psicologicamente. E mesmo que no futuro as ciências compreendam tudo (o que é tão plausível quanto um conto de fadas), ainda teríamos outro problema, que seria o excesso de tédio alavancado pela ausência do mistério!
Ainda em Ortodoxia, Chesterton afirmou que “enquanto se tem um mistério se tem saúde; quando se destrói o mistério se cria a morbidez 12”, enquanto o Padre Jesuíta Antônio Vieira (1608 – 1697) declarou:
“A admiração é filha da ignorância, porque ninguém se admira senão das coisas que ignora, principalmente se são grandes; e mãe da ciência, porque admirados os homens das coisas que ignoram, inquirem e investigam as causas delas até as alcançar, e isto é o que se chama ciência”.
Quando o cristianismo afirma que cada um nós deve carregar sua cruz, ele não ignora nenhum dos conceitos anteriores. Além do mais, nossos sofrimentos contribuem para os nossos aperfeiçoamentos, a mesma lógica torna plausível até mesmo imaginar o demônio como uma espécie de personal trainer, sobretudo de pessoas já capacitadas de boa ética! Contudo, o cristianismo também defende que devemos amar ao próximo como amamos a nós mesmos, e foi, certamente, pensando nisto que a Igreja Católica consolidou instituições como os hospitais. Além do mais, a mesma igreja que possibilitou o método cientifico 13 nunca pretendeu eliminar, por exemplo, o mistério da Santíssima Trinidade.
Em 2003 o então cardeal Joseph Aloisius Ratzinger proferiu, em entrevista concedida ao jornalista italiano António Socci:
É fácil perceber que as coisas proporcionadas por um mundo meramente material – ou mesmo intelectual – não atendem à necessidade mais profunda, mais radical, que existe em todo o homem: porque – como dizem os Padres da Igreja – o homem anseia pelo infinito. Parece-me que precisamente o nosso tempo, com as suas contradições, os seus desesperos, o seu massivo empenho em refugiar-se em becos sem saída como a droga, manifesta visivelmente essa sede do infinito.
Quando o homem busca o infinito por meio de algo materialmente ou intelectualmente demonstrável (mensurável), ele pode acabar como o louco que acredita que todos estão conspirando contra ele, ou seja, doentio pelo egocentrismo. Por exemplo, é evidente que devemos desempenhar nossas profissões com total perseverança, responsabilidade e máxima perfeição, mas seria errôneo buscarmos “o infinito” trabalhando em uma indústria, comércio, órgão educacional ou outras instituições. Afinal, é claro que aqueles que buscam o infinito unicamente por meio de um ofício finito acabam adquirindo um grande desequilíbrio em sua vida, ou seja, mesmo que sejam sublimes em determinado segmento, irão desprezar outros ramos, cargos e, consequentemente, outras pessoas. Na ânsia de se engradecerem, não notarão o quanto se apequenarão em seus “próprios mundos”!
Quando um egocêntrico acredita que todos só se interessam por ele, já que se vê como medida máxima, ele não será capaz de ver nos outros nada além daquilo que ele mesmo não possa conter, assim não encontrará nada de substancial ou misterioso em ninguém – todos se tornam desinteressantes, e ele se tornará um chato de tão limitado por suas atuais capacitações! 14 De certo modo, estamos presenciando algo similar no campo artístico.
Na obra Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental, o autor, Thomas Woords Jr., deixa claro que, quando um artista perde a expectativa de transcendência de si e deste mundo, ele produzirá obras que exprimam suas próprias lutas e seus próprios sentimentos, enfim irá explorar sua essência. Woods sela tal conceito documentando que “o artista medieval, consciente de que seu papel era comunicar algo maior do que ele mesmo, normalmente não assinava as obras” 15. Talvez, este seja o motivo pelo qual artistas comumente tornam-se militantes de políticos totalitários – ambos são individualistas.
Por fim, não basta ter senso político, artístico, científico e estar envolto de mistérios e entretenimentos. Também não basta esvaziar-se de si, para que, no espaço vago, se possa engrandecer-se dos outros. Nossas necessidades são ainda mais elevadas.
Assim como nossas ações do presente visam a algo no futuro (frequentamos o ensino fundamental, objetivando cursar universidades; obtemos diplomas, visando a alcançar empregos, e assim sucessivamente), também precisamos atribuir a esta vida um propósito que esteja em outra, do contrário, inevitavelmente consideraremos que o sepulcro é o único troféu para toda a biografia! Neste caso, é válido agirmos de modo oposto ao matemático e ao poeta do conto – enobrecermo-nos diante da possibilidade de conhecer o desconhecido.
Se um matemático desejar se comover pelos poemas, ele deverá “lê-los com o coração”; se um poeta desejar desfrutar de cálculos, ele deverá estudá-los com a razão. Da mesma maneira, se desejamos viver esta vida plenamente, precisamos considerar a morte como um fato, acreditar na transcendência com o coração e, se nada disso for suficiente, devemos fortalecer nossa fé pelas ciências, por evidências arqueológicas e por outros aspectos históricos ou empíricos. Afinal, acreditar que o cristianismo se mantém por séculos alicerçados exclusivamente na coluna da fé é como acreditar que alguém realmente goste de “despentear os cabelos da noite, para depois uni-los em tranças úmidas de orvalho com fivelas de pirilampos”.
Escrito por Eric M. Rabello.
Notas:
- Em alusão ao matemático norte-americano John Forbes Nash (1928 – 2015), que além de ter sido reconhecido academicamente, tornou-se figura popular por meio do filme Uma mente brilhante (drama biográfico).
- Em alusão ao poeta brasileiro Paulo Bomfim (1926 – 2019). Foi membro da Academia Paulista de Letras, ocupou a cadeira de número 35.
- Citação baseada em entrevista que Paulo Bomfim (1926 – 2019) concedeu ao jornalista Salomão Schvartzman (1934 – 2019), em 15 de maio de 2006 (Rádio Cultura FM de São Paulo, 103,3 Mhz).
- ibid., p. N/D.
- O Colecionador de Minutos, São Paulo, Editora Gente 2006. p. 11.
- Ortodoxia, São Paulo, Editora Mundo Cristão 2017. p. 26.
- ibid., p. 28.
- G. K. Chesterton. loc. cit.
- Por exemplo, quando temos no mercado problemas financeiros, a origem poderá ser a falta de crédito, ou seja, a carência de fé (crer, acreditar).
- No contexto deste artigo, tecnologia, sobretudo tecnologia da informação, também pode ser enquadrada como “atividade neutra”, contudo foi associada às ciências devido ao grande valor contemporâneo deste setor.
- Ortodoxia, São Paulo, Editora Mundo Cristão 2017. p. 27.
- ibid., p. 39.
- Na obra Como a Igreja Católica Construiu a Civilização Ocidental (São Paulo, Editora Quadrante 2010. p. 72.), o autor, Thomas Woods Jr. menciona que o pe. Stanley Jaki alerta que o livro da Sabedoria (11, 20) diz que “Deus dispôs todas as coisas com medida, quantidade e peso”, e que a partir de tal fato foi possível arquitetar o método cientifico.
- Até mesmo clérigos, se desejarem “cegamente” um crescimento intelectual na teologia, poderão utilizá-lo, sobretudo, para sobrepujar outros sacerdotes e leigos!
- ibid., p. 210.
Nota da editoria:
Imagem de capa: “O navio dos loucos” (1503 – 1504), por Hieronymus Bosch (1450 – 1516).