“Uma pessoa é única ao estender a mão, e ao recolhê-la inesperadamente torna-se mais uma.
O egoísmo unifica os insignificantes.”
William Shakespeare (1564 – 1616)
De onde vem o imenso sucesso de Sartre? Da habilidade de ter feito uma sábia mistura de todas as filosofias modernas, previamente desnatas ou desidratadas? Não o creio. Sartre é indubitavelmente pouco original, e não é muito difícil analisar os ingredientes de sua salada. Todos os filósofos, de Descartes a Husserl e Heidegger, aí estão, mas o que predomina é Hegel e Marx. Numa época como a nossa, esse é o truque para o sucesso. “O homem novo” do qual engravidou nosso século é um arlequim cosido de pedaços pedidos às épocas anteriores. Os séculos de decadência substituem a originalidade pelo sincretismo. E sob este ponto de vista o cérebro de Sartre é um excelente aparelho de compor e dosar. Quando lemos suas obras, podemos prever com boa segurança o modo com que vai compor uma mistura para nos inculcar seus sofismas.
Basta ver o que é a moda: é o que se des-moda, como já foi dito, mas é também o que se re-moda e perfeitamente se plagia. O teclado da tolice é monótono. Para ver isto com nitidez basta visitar um asilo de alienados.
O sucesso de Sartre — já em declínio e provisoriamente substituído pelo de Marcuse — só se explica pela hábil combinação dos sistemas em que todos os espíritos ditos modernos podem encontrar o que julgam procurar (distingamos entre moda e tradição. A moda é a repetição morna do tempo, a tradição é o jato vivo do eterno. A moda nasce e morre, a moda faz data. A tradição flui sem cessar às vezes subterraneamente, de suas fontes vivas: “o pacto original do homem”, segundo Simone Weil, não envelhece).
Sartre não é apenas o perfeito arlequim da filosofia moderna, cosido à mão, made in Paris. É um refletor, um espelho em que o homem moderno automaticamente se encontra consigo mesmo (ou julga realizar esse difícil encontro)1. Nesse sentido pode-se dizer que Sartre não existe. Ele é uma imagem, nem mesmo a própria imagem e sim a de todos os que nunca saíram de si mesmos e jamais sairão, e cujo nome, hoje, é Legião. Sartre é a subjetividade do homem moderno posta em fórmulas, etiquetada, padronizada e reduzida ao vazio absoluto: não há nada, nenhuma realidade nessa subjetividade, a não ser palavras, palavras que têm um sentido, sem dúvida, mas não o sentido que corresponde aos seres de que são sinais, mas apenas o sentido que lhes dá quem as pronuncia.
Será Sartre então ininteligível? Não, não. Todos os que se movem na radical subjetividade de Sartre se compreendem. Sartre é um espelho falante, um espelho que fala pelos que nele se miram e nele se ouvem e se entendem, ou melhor, um espelho ou ressoador em que seus leitores se ouvem, se entendem, e já que nada existe fora deles, digamos um espelho ou ressoador onde eles encontram o ego, o oco, o vazio em que comungam.
É preciso reconhecer em Sartre o mérito de ter conseguido arrancar a significação profunda da filosofia moderna e a fascinação do nada que a tortura: velho salgueiro apodrecido e reduzido à casca que, de época em época, se desgasta. “A monstruosa profundidade da epiderme”, dizia Verlaine. “A monstruosa profundidade do Eu”, poderíamos acrescentar: furada a película, não se encontra nada, indefinidamente. Sartre ousou proclamar a boa nova da perdição, de cuja revelação remava sem parar o moderno humanismo. Ei-la: “O homem é uma paixão inútil”.
Vem daí seu sucesso. Nosso contemporâneos estão gastando as últimas reservas de realidade que seu subjetivismo ainda continha, ao menos na conduta. O que se diz não é mister que se pense, e muito menos que se faça. E agora:
Ah! bebeu-se tudo, tudo comeu-se, e nada mais resta dizer! Todos os bastardos, os abortos, frustrados, impúberes, os declamadores que não chegam a existir falam de existência etc, etc, e se precipitam sobre aquele que, definitivamente, disse o que eles jamais poderão ser sem destruir tudo o que é. O nada é um ponto de convergência, como o ser, e até mais sedutor. É difícil “cair para cima” no Princípio do Ser. Cair no nada está ao alcance de qualquer um: basta-lhe deixar tudo correr. Mas, para saborear a vertigem do vácuo, é preciso fazê-lo em torno de si. Todas as subjetividades se aglomeram assim no mesmo niilismo, no mesmo apetite de destruição. O acúmulo delas se faz massa. Os intelectuais dos tempos modernos anulam, esvaziam tudo por onde passam. Manada de búfalos diplomados.
E por isso têm de ser marxistas, à imagem de seu chefe de fila. O subjetivismo deles coincide com o coletivismo, como também com o niilismo: “Eu sou todos, o inimigo misterioso de tudo”.2
E não há aí nenhum mistério, senão para Victor Hugo, ao mesmo tempo lúcido e enfeitiçado, perspicaz até o momento em que condenaria a si mesmo. O eu é, sem o mínimo paradoxo, o mais feroz dos coletivistas. Ele quer que cada um seja eu e se reduza a seu eu próprio. Para isto é preciso que cada eu nada tenha. Se tem alguma coisa tem o ser, o real, em que se aliena e se torna outro em relação a si mesmo, e deixa de ser eu.
Uma “sociedade” com a praga que Valéry chama “a multiplicação dos sós” é necessariamente coletivista. Como diria o conselheiro Acácio, para ser eu não é preciso ser outro, na dependência de outro, Deus, homem, hierarquia, sociedade, instituições, coisas, universo, nada em suma de tudo que é. É então necessário suprimir qualquer alienação, romper todos os vínculo que ainda unissem, mesmo mentalmente, o eu ao não-eu.
Mas, para que todas as subjetividades estejam na mesma situação, é preciso compor todo um Estado proprietário de tudo que não é o próprio eu, o eu esvaziado de ser, ou , se assim podemos dizer, o eu que recebe seu vazio de ser — Monstro anônimo em cujas mínimas percepções se vê que não passa de um Aparelho manobrado por uma “nova classe dirigente” e minoritária. The madness of the many for the gain of a few, dizia Pope. Atrás do monstro estão os maquinistas.
Para ver isso, é preciso deixar toda a subjetividade. Ao contrário, quanto mais mergulhamos na subjetividade para liberá-la do que não é ela, tanto mais nos diluímos numa coletividade imaginária, numa espécie de “teosfera” de massa humana divinizada, que outra coisa não é senão o eu indefinidamente dilatado. O intelectual moderno adora esse joguinho mental em que, como diz Marx, o “indivíduo coincide com a espécie”. Sem sair dele mesmo, sem nada fazer senão tudo desfazer.
Sartre traz assim em si o destino da humanidade. Para reconciliar o eu com os outros, precisa tudo destruir e tudo reconstruir, mas somente na imaginação. O próprio da coletividade (e do coletivismo) é de não existir a não ser no espírito. As consequências do mito marxista são todavia reais: Leviatã, totalitarismo etc, etc. A miragem no deserto também tem consequências para os viajantes que as veem: a diferença entre Sartre e esses viajantes é esta: Sartre e seus êmulos não percebem que são vítimas de uma miragem. Assim é que Sartre, sem nenhum abalo interno ou externo, pode escrever: “Numa sociedade do tipo da URSS, em que o valor supremo é o trabalho e a generosidade do produtor, que produz para dar, tornar-se a virtude maior”. Não vale a pena perguntar a tão magnânimo escritor por que é que não se engaja imediatamente como trabalhador de choque na URSS. Ele nos responderia humildemente que reconhece sua indignidade e que recebe polpudos direitos autorais nos países burgueses para expiação de seus pecados. O melhor, ou pior, é que ele está convencido disso. “O homem é o ser cuja aparição faz que um mundo exista”, escreve Sartre. De onde se deduzirá que “Sartre é o ser cuja aparição faz que exista a generosidade do Estado soviético, que produz para dar”. A fórmula é dele mesmo: o Estado soviético produz para dar! Ah!, a estupidez infinita do “intelectual”…
Sabemos que, para Marx, a história se divide em dois períodos: o primeiro em que, sendo alienado, o homem não pode ser ele mesmo; o segundo em que, liberado de suas alienações pela graça do comunismo integral, pode o homem se criar a si mesmo como ser inteiramente livre. “Segundo este destino histórico”, escreve com justeza Thomas Molnar, Sartre se situa no segundo período da história do mundo: ele é o “São Paulo” de um “Cristo” que seria Karl Marx.
Nunca se repetirá bastante que o marxismo é uma heresia cristã, e que é o ponto do extremo atingimento da heresia cristã dentro da qual nosso mundo do século XX (e o que nele subsiste de catolicismo) está soçobrando. Nunca se dirá bastante que, desde o “advento do Eu” inaugurado por Lutero – lembremos os Trois Reformateurs de Maritain a propósito desse registro de nascimento –, assistimos todos à decomposição do cristianismo, à sua secularização, do rebatimento da vertical da salvação sobrenatural sobre o plano horizontal da salvação temporal. Nada se explica na história do mundo moderno sem “as ideias cristãs que ficaram loucas” de Chesterton, e sem a corrupção do cristianismo. E isto assim é não somente porque o cristianismo impregnou sociologicamente as mentalidades a tal ponto que sua renegação ainda manifesta o revés de sua presença, não somente também porque, para ser eficaz, a luta contra o cristianismo pede-lhe as armas (a razão e a fé), mas sobretudo porque o corpo de verdades constituído pela reconciliação da natureza e da graça, desde a Redenção, é tão universal que, até para dele se evadir, é preciso ainda de algum modo a ele pertencer, e é preciso apoderar-se de uma dessas verdades, deixando-a morrer das consequências da amputação, e então, em torno desse cadáver, construir não sei que espécie de mecânica de suplência. E é por isso que, para triunfar, como atualmente se vê, a heresia deve penetrar no próprio interior do cristianismo, in sinu gremioque Ecclesiae.
O subjetivismo moderno é o fruto abortado de um cristianismo corrompido. A boa nova, anunciada por Cristo, é a da Salvação individual. O Verbo não se encarnou para salvar povos, sociedades, raças, civilizações e humanidade, mas para salvar as almas radicalmente pessoais, encarnadas em corpos3 que ressuscitarão no último dia. I and my God, dizia o Cardeal Newman, e nós diríamos que essa divisa condensa e exprime a essência do cristianismo, mas exprime-a no nível do sobrenatural, segundo uma palavra de Pascal: “Derramei por ti tal gota de sangue”, e segundo o mistério da predestinação onde se encontram a total liberdade da ação divina, pela qual os eleitos chegam à bem-aventurança, e a inteira liberdade do homem. A graça, princípio radical de operação propriamente divinas no homem, penetra até o centro mesmo da pessoa incomunicável que é sua sede (actimes sunt suppositorum) sem constranger a liberdade, e até, ao contrário, conferindo-lhe seu caráter livre, “porque Deus opera em cada espécie de ser segundo a natureza própria da espécie”, de modo que a ação divina é verdadeiramente da própria pessoa:
“É preciso que o homem chegue ao fim último por suas própria operações”, per proprias operationes, diz Santo Tomás. E para que a pessoa seja, ela mesma, causa eficiente (ipsa efficiens), é preciso que ela seja renovada, regenerada, disposta por Deus a atos sobrenaturais. O divino entra assim na própria fonte de todas as nossas atividades, no coração de nossa pessoa pelo divino sobre-elevada. Pode-se pois afirmar que o cristianismo é a religião de um Deus que se revela à pessoa, como tal.
Essa é a razão pela qual uma sociedade de pessoas, por si incomunicáveis, é possível, mas somente em nível sobrenatural: penetrando até o centro mais íntimo de cada pessoa e impregnando-a de sua graça, Deus as chama, todas as que ele elegeu, à participação de sua vida divina. Gozam todas de um mesmo bem comum sobrenatural que cada uma reencontra presente em cada uma das outras, naquilo que as constitui propriamente. Compreende-se assim o alcance dos preceitos evangélicos: “Amarás o Senhor teu Deus; e o próximo como a ti mesmo”, sendo o segundo semelhante ao primeiro: cada pessoa que ama a Deus com amor sobrenatural coincide com seus próprios alicerces e aí descobre a presença de Deus, e então se ama a si mesma com um amor que nada tem de egoísmo e que o próprio Deus move em direção ao próximo, onde está presente de fato ou em esperança; essa pessoa ama então a pessoa do outro como ama sua própria, ambas na sobre-elevação do amor divino. E por aí se vê que, para amar o próximo com amor sobrenatural, único capaz de atingir o próximo como tal, e de quebrar por cima a incomunicabilidade da pessoa, é preciso primeiro amar a Deus sobrenaturalmente4. O amor do próximo passa sempre pela cabeça do Corpo Místico de Cristo e não seria possível sem essa cabeça. Entrevemos aqui a razão pela qual a Igreja exige uma autoridade suprema que garanta a efusão da graça de Deus em seus membros, e que seja a indefectível guardiã da doutrina.
Uma sociedade “personalista e comunitária” só é possível na altura do sobrenatural. O Reino de Deus não é deste mundo, ainda que esteja no mundo de modo incoativo. A secularização dos conceitos fundamentais sobre os quais está fundado, secularização que não para de se acelerar desde a Reforma, a Revolução e a “Mutação” da Igreja desencadeada pelo Vaticano II, é o empreendimento de destruição das sociedades naturais (e da política natural que lhe corresponde), o mais violento que a humanidade pode conhecer: esse empreendimento, em nome da liberdade e da igualdade, dissocia radicalmente as pessoas incomunicáveis que agrupa e amontoa. Por via de consequência surge um novo tipo de estado que desempenha o papel da divindade desaparecida e que socializa, graças a um aparelho coercitivo totalitário, ou de tendência totalitária, as condutas pessoais. Não é de admirar que esse tipo de estado tome o nome de Estado-Providência: ele se substitui a Cristo, fonte de todas as graças. E é por isso que o bispo Schmitt, de Metz, um dos corifeus do “personalismo comunitário”, proclama logicamente que “a socialização é uma graça”.
Marx e Sartre aqueceram até o mais alto grau de incandescência subversiva esse “personalismo comunitário” que devemos denunciar como a heresia cristã por excelência, heresia que transporta as noções fundamentais da vida sobrenatural para a vida social e política, e no mesmo passe transmuta o homem em ersatz da divindade.
Basta ler o belo livro de Thomas Molnar para verificar que Sartre se atirou no marxismo como quem entra numa ordem religiosa. Como tantos outros, ele é uma pobre vítima da perfeita heresia cristã que rebenta hoje no mundo como um abscesso.
Por Marcel de Corte (1905 – 1994), filósofo católico belga, conhecido por sua obra
L’intelligence en péril de mort e por sua colaboração na revista Itinéraires e no jornal La Libre Belgique.
(Trad. Gustavo Corção, publicado em PERMANÊNCIA, Nov. 1970)
Notas:
- Nota do tradutor.
- “Je suis tous, l´ennemi mysterieux de tout” – Victor Hugo.
- A expressão “almas encarnadas em corpos” é infeliz por sugerir a ideia de uma existência da alma separada anterior à existência do corpo, ideia essa insustentável. O artigo nada perderia se aqui o autor dissesse “almas cujos corpos…”. – NT.
- Diríamos que é preciso, no que nos toca, primeiro nos entregarmos ao império do amor divino, verdadeiramente primeiro nesse encontro de amor. – NT.
Nota da editoria:
Imagem de capa: “Sartre”, de Suzann Sines”.