Tempos artificiais

Obra: "Deserto de Gollan" (2022), de Wendell Well.

É muito melhor viver sem felicidade do que sem amor.
William Shakespeare (1564 – 1616).



Quanto mais artificial a realidade melhor. Tudo que nos livre dessa realidade caótica, nublada e confusa. Aliás inventamos os óculos tridimensionais, uma realidade ilusória, que gera emoções diversas e o melhor, da maneira que queremos. Mas não nos demos conta que, quanto mais artificias, mais isso nos distância de nós, nos proporcionando uma fuga da realidade presente e fazendo-nos cada dia mais irresponsáveis quanto o agora.

O fato é que em tempos artificiais toda realidade é densa. Viver é uma arte que exige coragem, ainda que a realidade seja caótica, nublada, confusa e desesperadora, Deus invade a história e habita a realidade do jeito que ela é na forma que todos estavam acostumados a ver, como um curso natural da existência: a partir do nascimento (Lc 2:11 e 12). Mas em nenhum momento negou a realidade, antes como um bebê foge carregado nos braços do pai junto a mãe para o Egito devido ao novo decreto de matança de todas as crianças nascidas nos últimos dois anos (Mt 2:11 a 18).

Nasce em uma manjedoura por falta de lugares na hospedaria (penso não ser um lugar apropriado para conceber uma criança vulnerável, visto que todo cuidado é necessário para que a criança não seja exposta junto à mãe a infecções), mas como vemos não tinha lugar para ele, aliás não tinha lugar para uma uma mãe grávida desesperada pronta a dar à luz (Lc 2:6). Corações duros que refletia nas casas e hospedarias fechadas, não tinha mais sensibilidade, a dureza da vida havia usurpado.

Trabalha como um carpinteiro (aprende o ofício do pai, em Israel aquele que não seguia no caminho para ser rabi, virava a classe trabalhadora, é interessante, pois, Jesus é reconhecido como um rabi, mas se identifica com aqueles que lutavam para ganhar um denário, o salário pago para um dia de trabalho). Está sujeito a andar como todos debaixo do sol quente seja com as sandálias nos pés, ou, com os pés descalço levantando a poeira do chão batido.

Sofre as injustiças e calúnias de pessoas que tramaram o tempo todo contra ele, sentiu na própria pele a justiça sendo torcida em um tribunal armado e manjado pelas autoridades da época, mais conhecido como sinédrio (tribunal religioso judaico). Mas responde essa mesma realidade caótica como uma brasa viva de quem ensina a viver e de quem ama a vida como ela é, e a eleva em sua plenitude. Antes é o protótipo de como todo ser humano deve ser e assim responder a realidade presente sendo fresta que invade o quarto escuro e ilumina todo o cômodo.

Mas também essa mesma luz é aquela que incomoda os olhos por tanto tempo não se ter contato com a claridade. E acima de tudo nos mostra que em algum lugar há uma luz de esperança não somente de ser gente, mas de viver a realidade presente sujeita à suas intempéries cotidianas (Jo 16:33). Como disse Dostoiévski no seu livro Diário do Subsolo : “Com amor, vive-se mesmo sem felicidade. A vida é boa, mesmo em apuros; seja qual for a vida, é bom viveres.”


Por João Pedro Vicente da Silva.
Publicado originalmente no website da Editora Ultimato, em 12 de março de 2018.


Nota da editoria:

Imagem da capa: “Deserto de Gollan” (2022), de Wendell Well.


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