A descoberta de sentido no sofrimento

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Quando já não somos capazes de mudar uma situação, somos desafiados a mudar a nós próprios.”,
Viktor Emil Frankl (1905 – 1997): neurologista e psiquiatra austríaco.



Entrevistadora: Dr. Frankl, por que certas pessoas são fortes e conseguem superar seus problemas, e outras não?

Viktor Frankl: O Fator determinante chama-se “decisão”. A liberdade de escolha, de tomar uma decisão, de tornar-se quem quer ser, apesar das circunstâncias, as quais, só em parte, determinam o nosso comportamento. Eu desejo agir livremente, como um ser responsável, um ser plenamente humano. Eu desejo agir em harmonia com minha hereditariedade e ambiente, aproveitando aquilo que devo a eles ainda que nas condições mais adversas. É o que observamos em situações trágicas ou condições de grande estresse, com as pessoas que passam anos em campos de concentração, sujeitas às piores condições. Existe uma vasta literatura psiquiátrica sobre esse assunto. Precisamos reconhecer que as pessoas são livres. Se quisermos estudar a vida dessas pessoas de um modo estritamente objetivo, científico ou empírico, e não da maneira como você explicou no início, fica a impressão de que o ser humano é algo – não ninguém completamente determinado, mas as pessoas não reconhecem essa liberdade e responsabilidade. A responsabilidade por si mesmo e de fazer algo e se tornar alguém.

Basicamente, então, o Sr. afirma que a vida tem sentido, independente das condições. Mas como pode alguém que experimenta o sentimento de desespero reconhecer esse sentido?

Permita-me lhe apresentar uma estranha definição do desespero. Eu costumo afirmar que o desespero pode ser definido nos termos de uma equação matemática.

D = SS

Quer dizer: o desespero é igual a sofrimento sem o sentido. Enquanto o indivíduo não for capaz de descobrir nenhum sentido em seu sofrimento, ele estará propenso ao desespero e, em certas condições, ao suicídio. Mas, no instante em que vê um sentido no seu sofrimento, a pessoa poderá conformá-lo a um determinado fim, transformando uma situação adversa numa realização pessoal, fazendo de uma tragédia um triunfo pessoal. Mas, para isso, precisa saber aonde quer chegar, o que deve fazer. Mas, se pessoas dos mais diversos segmentos da sociedade atual são incapazes de descobrir qualquer sentido em suas vidas, de enxergar um porquê na vida, elas não têm pelo que viver.

Como responder à pergunta “por que logo eu?”

Não é uma pergunta a que um psiquiatra ou um cientista possa responder. Mas eu não compartilho a opinião do filósofo Jean-Paul Sartre de que devemos aceitar e suportar, com coragem e heroísmo, a absoluta falta de sentido de nossas vidas. Eu penso que nós devemos, antes, aceitar a nossa incapacidade de reconhecer o sentido maior, em termos intelectuais ou meramente racionais. É isto que temos de aceitar. Isso não impede que acreditemos num sentido maior. Mas, levar alguém, um paciente, digamos, a aceitar essa concepção não é papel do psiquiatra, mas, sobretudo, do teólogo.

Até que ponto o Sr. acredita haver possibilidade de escolha perante as situações da vida?

A nossa liberdade é limitada. Quer dizer que nunca estamos completamente livres das circunstancias, sejam elas de ordem biológica, psicológica ou sociológica. Mas a liberdade plena está sempre ao nosso alcance, isto é, a liberdade de enfrentar quaisquer condições adversas. O modo como reagimos às condições impostas é uma decisão nossa. Em outras palavras: se não pudermos mudar a situação, ainda resta-nos a liberdade de mudar nossa atitude frente a essa situação.

O Sr. poderia dar um exemplo de um sentido tirado de uma situação de desespero?

Certo dia recebi uma carta de um jovem estudante do Texas, na qual me contava a sua história de vida. Quando tinha 17 anos, ele sofreu um acidente quando praticava mergulho. Ele ficou paralisado do pescoço para baixo. Ele escreveu: “Eu quebrei o meu pescoço, mas ele não me quebrou. Agora sou um deficiente. Provavelmente, esta deficiência vai me acompanhar por toda a vida. Mas, eu não interrompi os meus estudos. Por causa da minha deficiência, eu comecei a querer ajudar outras pessoas. Quero ser psicólogo para ajudar outras pessoas. tenho certeza.”, disse-me ele que o meu sofrimento vai aumentar substancialmente a minha capacidade de compreender e ajudar outras pessoas. Este homem, três anos depois, foi convidado por mim para dar uma palestra no 3º Congresso Mundial de Logoterapia, realizado na Universidade de Regensburg na Alemanha. Ele viajou do Texas à Alemanha, em sua cadeira de rodas, e proferiu uma palestra intitulada: “O Poder Desafiador do Espirito Humano”. E as palavras finais foram: “Eu sei que é possível. Eu sou a prova disso!”.

Por 25 anos, eu tive a honra de ser o diretor do departamento neurológico de um hospital-geral. Nesse tempo, eu tive várias oportunidades de testemunhar como muitos jovens conseguem tomar as rédeas do seu destino. Vi, por exemplo, garotas paralíticas que até a semana anterior iam dançar discoteca. Algumas tinham tumor cerebral; outras, tumor na espinha dorsal. Vi também jovens rapazes que esquiavam nos Alpes ou pilotavam motos. Agora não podiam mais mover as pernas. Vi pessoas com todos os membros amputados, em alguns casos devido a um choque elétrico de alta tensão. Sei de um jovem que contou à sua antiga enfermeira… Ele escreveu: “antes desse terrível acidente, a minha vida não tinha graça, e eu vivia bebendo. Mas, desde que me acidentei, eu sei o que é ser feliz.”. Dá para imaginar? Com todos os membros amputados! “Eu sei o que é ser feliz!”. A vida dele encheu-se de alegria novamente, simplesmente porque, enquanto buscamos a felicidade, enquanto fazemos da felicidade uma meta, não podemos alcançá-la. Quanto mais a almejamos, mais ela se distancia. Esse fato é mais evidente em casos de neurose sexual, pois são justamente aqueles homens que se esforçam por demonstrar a sua potência, que vivem atormentados pela impotência. Quanto mais uma mulher tenta mostrar, pelo menos para si mesma, o quanto é capaz de sentir um orgasmo, mais propensa ela estará a frigidez. Mas quando você não pensa em prazer ou satisfação, mas simplesmente se entrega, seja na vida sexual, seja no trabalho, seja no amor, quando não mais se preocupa em ser feliz ou bem-sucedido, então a felicidade se instala por si mesma.

Dr. Frankl, qual o sentido que os prisioneiros de Auschwitz – e o Sr. foi um deles – podiam tirar de uma situação absolutamente desesperadora?

“Se é que a vida tem sentido, também o sofrimento necessariamente o terá. Afinal de contas, o sofrimento faz parte da vida, de alguma forma, do mesmo modo que o destino e a morte. Aflição e morte fazem parte da existência como um todo.”

Viktor E. Frankl (1905 – 1997)

Sobre o que aprendi em Auschwitz e Dachau, permita que eu fale numa perspectiva mais objetiva, sobre experiências muito similares vividas pelos prisioneiros dos campos de concentração. A literatura psiquiátrica especializada em prisioneiros de guerra mostra, com base em pesquisas independentes, que aqueles prisioneiros com mais chance de sobreviver à vida no campo eram aqueles que pensavam no futuro, que queriam ser livres novamente, e, mais importante ainda, que viviam em função de um sentido a ser realizado, de um trabalho a ser concluído. Ou então que desejavam rever os entes queridos. Permita que eu relate um incidente que me ocorreu num dos campos em que eu estive. Eu me deparei, num curto período, com dois companheiros que estavam pensando em se suicidar. O que fiz eu então? Eu perguntei por que queriam tirar suas próprias vidas. E sem que soubessem um do outro, disseram: “Porque eu não espero mais nada da minha vida”. Sabe que pergunta eu improvisei na hora? Veja: “em vez disso, não é a vida que espera algo de você agora?”. De repente, um deles se deu conta de que a sua filha, a quem ele amava mais que tudo, o esperava nos Estados Unidos, para onde ela tinha emigrado. E o outro, por sua vez, me confessou que havia escrito e editado uma coleção de livros de geografia, e que queria concluir essa coleção. Nesse momento, houve como que uma revolução copernicana. De repente, ocorreu um giro de 180 graus, e eles viram que podiam fazer algo pelo mundo, em vez de simplesmente ficar aguardando o veredicto “vida ou morte”. Essas pessoas tinham mais chance de sobreviver que outras, nas mesmas circunstâncias. Quer dizer, milhões tiveram que morrer nos campos, particularmente em Auschwitz, como você sabe, e para centenas de milhares deles a vida certamente tinha sentido, quando não era um sentido pessoal, podia ser religioso. Eles sabiam que iam morrer para, como diziam, “kiddush há-Shem”, ou seja, para a glória de Deus, na certeza da morte nas câmaras de gás.

Mesmo no momento da morte, eles conseguiram tirar um sentido neste momento.

Exatamente, exatamente. Nas minhas aulas costumo falar sobre o que chamo a “tríade da tragédia humana”: a dor, a morte e a culpa. Ninguém está livre do sofrimento, como a doença e a dor. Ninguém pode escapar definitivamente da morte. Não há quem nunca tenha sentido culpa. É impossível. Mas, como já dissemos, sempre é possível transformar o sofrimento e a tragédia num triunfo pessoal, numa realização genuinamente humana. Quanto à morte, ela pode nos servir como um estímulo para vivermos de modo responsável, porque, se fôssemos imortais, poderíamos adiar todas as coisas, não haveria urgência, não seria preciso agir agora mesmo. Como expressam as sábias palavras de Hilel, pronunciadas há aproximadamente 2 mil anos, e que encontramos na Escritura: “Se eu não fizer, quem o fará?”, “Se não agora, quando?”, “Se sou somente por mim, quem sou eu?”, quer dizer, não seria um verdadeiro ser humano. Porque o ser humano não é como o descrevem os sistemas da psicoterapia. Seu interesse básico não gira em torno dos complexos conflitos e problemas que se agitam na sua psique. Na verdade, a preocupação fundamental, básica e primordial de todo ser humano é com o mundo e as pessoas, um trabalho a ser feito, uma obra a ser terminada, um sentido e uma missão na vida, enfim, que estão à espera de serem transformados numa realidade concreta por uma determinada pessoa, e somente por ela. Agora! Quem mais, senão ele. Por fim, ele não age em interesse próprio, ou para aliviar as tensões e se sentir tranquilo, ou em busca de equilíbrio, ou para neutralizar as imposições do superego insatisfeito, ou, ainda para emular a imagem paterna. Ele age, na verdade, por uma causa ou por amor a alguém, e nunca apenas em interesse próprio. É isto que cabe ao homem fazer. Mas, se ele fosse imortal, poderia sempre adiar o seu dever. Não fariam sentido as palavras de Hilel. Não faria sentido dizer “Se não agora, quando?”, se o homem é imortal.

Voltando à questão do sofrimento e do desespero, parece que há pessoas que sofrem mais que outras. Elas não acabam duvidando da possibilidade de ainda encontrar um sentido na vida?

Capa da obra: “Em busca de sentido”, escrita por Viktor Emil Frankl (1905 – 1997). Publicada pela Editora Vozes, sob ISBN: 978-8532606266.Você não vai acreditar, mas os estudos empíricos, publicados há poucos anos por dois famosos psicólogos, revelaram, por meio de testes estatísticos, que as pessoas com pouco tempo de vida, que sabiam que iam morrer logo, percebiam com mais clareza um sentido na vida do que as demais pessoas. Se eu lhe contar a história… A diretora da faculdade de enfermagem da Universidade do Texas, no famoso Centro Médico do Texas, em Houston, me escreveu sobre o caso de uma jovem de 17 anos, aproximadamente, que ficou totalmente paralítica também do pescoço para baixo e que datilografava cartas segurando uma vareta na boca. A Sr. Stark, a diretora, contou-me, em apenas três linhas – lembro bem dessa carta. Ela contou que essa moça, todos os dias, lia os jornais e via televisão, e toda vez que ela se deparava com uma pessoa vivendo situação trágica, ela datilografava, usando a vareta, cartas com palavras de solidariedade e conforto. Ela sabe do que está falando, pode acreditar. A diretora escreveu-me ainda: “Ela é cheia de confiança e tem um profundo e rico sentido existencial, enquanto outros, mesmo vivendo em melhores condições, não conseguem encontrar um sentido e acabam por se matar”. Porque vivem frustrados, apanhados num vazio existencial. Eu tratei dessa sensação de vazio em um livro já em 1955. Desde então, esse mal vem crescendo no mundo inteiro. Ele está presente não apenas nos países ocidentais, mas também no chamado Terceiro Mundo e nos países comunistas, onde foi estudado por psiquiatras que escreveram sobre essa frustração existencial também observada nos países comunistas.

O Sr. quer dizer, então, que, para encontrar um sentido na vida, a pessoa tem de viver uma situação de sofrimento?

Eu não diria que é preciso passar pela experiência do sofrimento. Mas posso afirmar que o sentido pode ser encontrado em todas as circunstâncias da vida, por piores que sejam essas circunstancias, considerando que você não pode mudar as circunstâncias, conforme aliás, já falei aqui, uma vez que as causas do sofrimento não podem ser removidas [mesmo] quando é possível remover as causas do sofrimento, por exemplo, curando um câncer por meio de cirurgia. Se a pessoa sofre de uma grave neurose compulsiva-obsessiva, você deve buscar ajuda psicoterápica. Há no âmbito da logoterapia, por exemplo, certas técnicas que vêm sendo aplicadas com bastante sucesso, um fato reconhecido, inclusive, por berhavioristas. Se você se depara com condições sociológicas que lhe causam sofrimento, vai sentir a necessidade de mudar a situação, removendo a causa do seu sofrimento, por meio da ação politica, por exemplo. A propósito, eu gostaria de reafirmar o que disse, há algumas semanas, durante uma palestra aos professores e estudantes da Universidade Karl Marx, em Moscou. Eu fui convidado pelo pró-reitor para falar sobe as minhas ideias, durante um mês, mas só tive tempo para ficar dois dias. Eu lhe disse: “Não pensem que vim do Ocidente com a intenção de lhes vender uma opinião política. Não! Eu não venho aqui como político, mas, antes, a minha perspectiva transcende a política. Isso significa que eu só reconheço dois estilos de se fazer política, os dois tipos de políticos. O primeiro acha que o fim justifica os meios. O segundo tem plena consciência de que existem meios capazes de dessacralizar até o mais nobre dos fins”. Eles entenderam, e me aplaudiram. Disse ainda: “não vou a nenhum país com ideias preconcebidas sobre a sua situação política. Não me cabe julgar. Mas tenho o dever de atender a qualquer convite, seja de onde for, para transmitir a minha mensagem para quem precisa. O meu dever como médico é cumprir o juramento hipocrático, que me obriga a oferecer um meio de cura para toda e qualquer pessoa, ou mesmo uma população, que assim desejem.

Dr. Frankl, como o Sr. sabe, a África do Sul passa por momentos difíceis. A economia está em recessão, as pessoas ficaram insolventes ou perderam o emprego. Estamos longe de alcançar uma possibilidade política. O Sr. tem alguma mensagem que nos renove a esperança e o sentido da vida?

A única mensagem que posso lhes deixar é um princípio que eu adotei quando eu estava no campo de Auschwitz. A estatística mostra que as chances de eu sobreviver a Auschwitz era de uma em vinte e nove. E eu sentia que essa era a realidade. Mesmo assim, eu adotei a ideia central da filosofia do Sr. Karl Popper, segundo a qual não é possível se provar nenhuma hipótese. Só se pode falsificá-la, mostrar que ela é inválida ou insustentável. E sem conhecer a filosofia dele – comecei a estuda-lo há poucos anos –, eu apliquei essa teoria, dizendo a mim mesmo. “Viktor, a sua chance de sair vivo é muito pequena. Provavelmente você vai terminar numa câmara de gás”. Contudo, ninguém vai me convencer, com 100% de certeza, de que é impossível sobreviver, de que vou terminar numa câmara de gás. Uma vez que não é certeza eu morrer nos próximos dias, vou continuar a viver e a agir acreditando no amanhã.


Entrevistado Viktor Emil Frankl (1905 – 1997).
Texto revisado por Fábio Rabello.


Nota do editor:

A imagem associada a esta postagem é de autoria do ilustrador Leo Haas (1901 – 1983). Em 1937, o artista nascido na República Checa, que vem de uma família judia, foi preso e enviado para trabalhos forçados em Ostrava. Em 1942, foi aprisionado no campo de concentração de Theresienstadt, onde produziu mais de 400 desenhos. Obtenha algumas dessas imagens (desenhadas em Theresienstadt) no formato PDF, clicando aqui.




Assista a entrevista que originou esta postagem:




Compreenda mais. Ouça aula ministrada por José Nonir Nasser (1957 – 2013), onde o intelectual explica detalhadamente a obra “Em busca de sentido”:


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