“O historiador é um profeta que olha para trás.”
Friedrich Schlegel (1772 – 1829)
Sabemos que a espinha dorsal dos projetos revolucionários é sempre uma coleção de falsas promessas baseadas na imagem artificialmente construída de uma perfeita, ou ao menos muito mais aprimorada, sociedade futura, paraíso na terra que, justamente por só poder preservar seu tônus retórico nesta condição de “futuro”, não chega jamais a ser realizado e nem pode sê-lo. Há séculos que essa mentalidade vem moldando o imaginário de gerações inteiras e fazendo com que, no mundo todo, as pessoas tenham seu senso de continuidade histórica completamente esfacelado, o que se verifica de modo particularmente acentuado no Brasil moderno, onde este senso nunca foi mesmo muito forte.
Doses cavalares dessa concepção fizeram com que uma visão de fato esquizofrênica da realidade se estabelecesse entre nós. No fantástico mundo do subjetivismo, em que vivemos, algo que aconteceu hoje pode “desacontecer” amanhã, desde que se julgue merecer o repúdio da versão mais atualizada do livro de regras do politicamente correto. O tal do “cancelamento” entra em cena, e reparem — o que ele opera não é jamais um mero desprezo ou boicote ao objeto alvo, mas, antes, a disposição psicológica de afirmar para si mesmo que aquele fato jamais ocorreu, que aquela pessoa jamais existiu; o que está no fundo deste mecanismo, para usar uma imagem psicanalítica, é um anseio de foraclusão, e não apenas de recalcamento.1 Seja como for, é assim que, quando menos se espera, num estalar de dedos, está desfeito o feito (= factum).
Cindir de tal modo a relação com o suceder histórico é o mesmo que cindir a consciência mesma, pois fazê-lo exige o esforço de estilhaçar a experiência do fluxo temporal, que corre sempre no mesmo sentido e é o campo no qual se dão todos os fatos — ou seja, o esforço de despedaçar a própria lógica básica e estruturante da experiência humana —, e reorganizá-lo como que em uma conglutinação de momentos; já não se quer mover-se na irrevogável linearidade conexiva da corrente do acontecer, mas na instabilidade flexível do contínuo reagrupamento dos instantes, o que é típico dos mais graves quadros psicopatológicos.2
Com a fragmentação da experiência histórica vem a fragmentação da personalidade e, em última instância, do próprio eu. Daí em diante, é coisa fácil levar bilhões de pessoas a crer, por exemplo, em pandemias estatisticamente impossíveis, fecundações biologicamente inviáveis e historinhas cosmológicas metafisicamente insustentáveis.
Por Daniel Marcondes
Notas:
- Como salientei, utilizo aqui esses termos mais como imagens ilustrativas do que em sentido precisamente técnico, uma vez que, segundo as teorias psicanalíticas (às quais não subscrevo), ambos os mecanismos são de ordem inconsciente, e não algo que se busque realizar voluntariamente. O que afirmo é que no ato do “cancelamento” esteja imbricado um apetite voraz de não meramente silenciar o alvo, afastá-lo ou “escondê-lo para debaixo do tapete”, o que corresponderia analogamente ao mecanismo freudiano do recalcamento (Verdrängung), afim às neuroses e mais ligado à ideia de repressão, mas sim de expulsá-lo à força do universo simbólico mesmo, de negar-lhe qualquer possibilidade de representação, tal como sugere o conceito lacaniano da foraclusão, afeito às psicoses e relacionado à ideia de rejeição propriamente (Verwerfung).
- Quanto a isso, é interessante notar, também, como os jovens da geração atual se mostram cada vez mais dados aos vídeos e menos à leitura. Analogamente, um livro mantém de modo muito mais explícito — inclusive física e visualmente — um sistema de conexões lineares, progressivas, sequenciais, enquanto os vídeos, principalmente no uso dos cortes e na possibilidade mais imediata e livre de se navegar em seu conteúdo, expressam melhor justamente essa experiência da sobreposição de imagens e constante reordenamento das informações — na forma e no significado — em mosaicos camaleônicos sempre na iminência de comunicar algo diferente do que há um minuto, de acordo com a conveniência.
Notas da editoria:
Imagem da capa: “Generation gap”, por Troy Rohn.