“Sabemos o que somos, mas não sabemos o que poderemos ser.”
William Shakespeare (1564 – 1616)
Livra-se da tolice geral. É uma providência de especial bom senso. As tolices vêm impulsionadas de fora, e algumas pessoas, que não se renderam à ignorância particular, não sabem como escapar da geral. É uma vulgaridade não estar contente com a própria sorte, por maior que ela seja, nem descontente com o próprio talento, por pior que ele seja. Todos, insatisfeitos com a própria felicidade, cobiçam a alheia. Também as pessoas de hoje enaltecem as coisas de ontem, e as daqui, as coisas de acolá. Tudo o que já passou parece melhor, e o que está distante é mais apreciado. É tão tolo quem ri de tudo quanto quem se zanga por qualquer coisa.
Gosto apurado. Há que cultivá-lo, tanto quanto o intelecto; a excelência do entender realça o apetite do desejar e depois a fruição do possuir. Conhece-se o tamanho das capacidades de alguém pela alteza de seus anseios. É preciso muita substância para satisfazer um grande talento; assim como os grandes bocados são para grandes paladares, as matérias sublimes são para personalidades sublimes. Os mais valentes temem o homem de bom gosto, os mais seguros de si perdem a autoconfiança diante dele. Como as coisas de primeira magnitude são raras, o apreço que se dá a elas há de ser seletivo. O gosto se adquire com o convívio e se herda com o tempo: é uma sorte estar próximo de quem o tem em grau máximo. Mas não há que manifestar desagrado diante de tudo, uma das maiores tolices que pode haver, sobretudo quando é mais por afeição que por impulso. Alguns gostariam que Deus estivesse criado outro mundo e outras perfeições, só para satisfazer sua extravagante fantasia.
Homem sem presunção. Quanto mais qualidades, menos ostentação, que costumava ser um desdouro comum a todas elas. É tão enfadonho para os outros quanto penosa para quem a pratica, que vive martirizado pelos cuidados a tomar e atormentado pela exatidão. Com a presunção, até as qualidades perdem o seu mérito, pois passam a ser considerados frutos de uma violência artificiosa mais que da espontaneidade natural, e tudo o que é natural sempre foi melhor que o artificial. Muitos creem que as pessoas presunçosas são alheias àquilo que presumem; quanto melhor se faz uma coisa mais há que esconder os artifícios utilizados, para que se veja como é natural aquela perfeição. Tampouco se deve, para escapar à presunção, cair nela, presumindo nada presumir. O homem sábio nunca deve mostrar-se conhecedor dos próprios méritos, pois o menor deslize chama a atenção dos outros. É duplamente superior quem guarda suas perfeições para si mesmo, não quer impressionar ninguém; e, encontrando esse caminho, obtém o reconhecimento geral.
Não agir sempre como um pombo. Há que alternar a astúcia da serpente com a candura do pombo. Não existe coisa mais fácil que enganar um homem de bem. Muito crê quem nunca mente, e muito confia quem nunca engana. Ser enganado nem sempre é sinal de tolice, às vezes é de bondade. Dois tipos de pessoas se preocupam muito com esses ataques: as que já passaram por isso, e aprenderam à própria custa, e as astutas, que aprenderam à custa dos outros. A sagacidade deve ser tão extrema na confiança quanto a astúcia é para as tramoias. Não se esforce tanto para ser um homem de bem que acabe dando ao outro a oportunidade de ser do mal. Seja uma mistura de pombo e serpente; não um monstro, um prodígio.
Homem de verdade. Quem o é não se ufana diante dos outros. Infeliz é a essência que não se baseia na verdade, pois nem todos os que parecem homens de verdade realmente os são: há os embusteiros, que só concebem quimeras e parem engodos; e há outros, semelhantes a eles, que os apoiam e preferem o incerto que o embuste promete, por ser muito, ao certo que a verdade garante, por ser pouco. Ao fim e ao cabo seus caprichos sempre acabam mal, porque não têm fundamento na integridade. Só a verdade pode conferir uma reputação sólida, e com veracidade o proveito é maior. Um embuste exige outros muitos, e assim tudo o que os mentirosos fabricam é quimera; como essa quimera só se apoia no ar, tem que cair por terra. Seus despropósitos nunca duram muito: tudo o que prometem basta para fazer-nos desconfiar, tal como tudo o que se oferece em demasia e promete o impossível.
Excertos da obra “A arte da sabedoria”,
escrita por Baltasar Gracián (1601 – 1658), em 1647.
Nota da editoria:
Imagem da capa: “Alegoria da sabedoria”, por Benedetto Luti (1666 – 1724).