“A experiência é o nome que damos aos nossos erros.”,
Oscar Wilde (1854 – 1900): escritor irlandês.
Encontrar algo é uma coisa, encontrar algo que não se procura, é outra; é serendípite! O termo é usado repetidas vezes no meio científico e acadêmico, onde existem muitos exemplos de serendipidade, mas podemos, de modo oportuno, aplicá-lo a outras situações da vida. Ocorre serendípite quando encontramos uma palavra no dicionário, estando em busca de outra; quando, na livraria, achamos um livro de ética, mas o que procurávamos era outro sobre computação.
Na vida acadêmica existem ocasiões múltiplas para viver a serendipidade. A rotina, a boa rotina de trabalho, é uma delas. O cientista busca seus resultados e, para tanto, imagina uma hipótese de trabalho e o plano para confirmá-la. No desenvolvimento do protocolo, se ele está atento, se exercita a serendipidade, pode descobrir muitas coisas que não eram objeto de busca. Se encontramos o que procuramos, diremos como Arquimedes: Eureka!, mas se encontramos o que não procurávamos, podemos dizer: Serendípite!
Definições de Serendípite
Horace Walpole (1717 – 1797) – em carta datada de 28 de janeiro de 1754 para Sir Horace Mann – relata que ficou impressionado com um conto de fadas que leu sobre “Os Três Principes de Serendip” (ou Serendib, o antigo nome do Ceilão, atual Sri Lanka), que sempre faziam descobertas por acidente e sagacidade. Lentin (1996) comenta a história dos príncipes, e a propositura para o novo termo, mas também descreve que Walpole foi traído por sua memória. O autor diz que as descobertas de Serendip, Serendib, e Sarendip nada devem ao acaso, e que resolviam os problemas e enigmas pelo poder de suas deduções. Ruiz (1997) comenta que os três príncipes foram chamados pelo pai no leito de morte. O rei queria deixar todo seu vasto reinado para os filhos e também dizer que havia um grande tesouro muito próximo da superfície. Logo após a morte do pai, os três filhos mobilizaram todos os homens do reinado para cavar e revolver a terra. Após vários anos de trabalho, nenhum tesouro foi encontrado, mas a terra foi tão revolvida, que as colheitas foram as maiores de toda a história do reino; serendípite em homenagem aos príncipes que procuravam o tesouro e encontraram colheita abundante. A sabedoria do rei, ao aconselhar os filhos, pode ser definida, então, como serendipidade.
Exemplos de serendipidade
As histórias da microbiologia, parasitologia, virologia, são similarmente marcadas pela hábil exploração de observações aparentemente pouco plausíveis. A ciência moderna não deixa de ser uma crônica de descobertas serendipitosas.
O escocês Alexander Fleming descobriu, em 1928, a penicilina. Um esporo contaminante de Penicillium notatum adentrou sua placa de Petri contendo bactérias sensíveis a penicilina. Qualquer microbiologista diria que a cultura estava contaminada, e que seria preciso repetir o experimento; Fleming, porém, graças à sua percepção, soube aproveitar essa aparente anomalia para descobrir o antibiótico. Talvez sua mente e seus olhos já estivessem preparados pelo fenômeno de 1922, onde uma gota de secreção nasal caiu na superfície do meio de cultura numa placa de Petri, e impediu o crescimento das bactérias por ação da lisozima presente no exsudato. Esta enzima descoberta na clara do ovo como agente antibacteriano pelo próprio Fleming, em 1922, foi também encontrada posteriormente nas secreções nasais e lacrimais dos animais. (Lacaz-Ruiz, 1992.).
A heparina foi descoberta por um estudante de medicina, que procurava, não um anticoagulante natural, mas caracterizar um procoagulante natural.
O anticoagulante oral tem sua origem nas pesquisas na área animal, feita em bovino que morreu de hemorragia espontânea após ingestão de trevo doce deteriorado.
Os sucrilhos ou corn-flakes surgem de um esquecimento do milho em um forno aceso durante todo um dia, por parte dos irmãos Kellog, no ano de 1898.
Continuamos a encontrar a atividade de pessoas serendipitosas em dezenas de instâncias fora da área biológica, alguns mundialmente comercializados: a borracha vulcanizada surge quando Charles Goodyear, em 1844, deixa cair um pedaço de borracha escolar, dentro de uma frigideira quente; o corante índigo, em 1893, quando um químico quebra o termômetro dentro de uma solução e reage com o mercúrio; o náilon, em 1939; o polietileno, em 1935, graças a um vazamento no laboratório.
Considerações finais
Devido à impaciência por resolver problemas práticos e imediatos, está se tornando cada vez mais difícil para os pesquisadores, desviarem livremente suas atenções e exercitarem o espírito de serendípite. A lembrança da serendipidade como atitude, com certeza irá ajudar no aprofundamento do que significa a humanidade em todos os seus aspectos. Existe até um axioma na ciência, que diz que a sorte favorece as mentes preparadas. Cabe a todos aqueles que se dedicam a ciência, o convite a refletir sobre o alcance do conceito de serendípite.
Escrito por Rogério Lacaz-Ruiz
(Prof. Dr. de Metodologia Científica e Microbiologia Zootécnica FZEA/USP)
Publicado originalmente no website: http://www.hottopos.com.
Referências bibliográficas:
Lacaz-Ruiz, R. Microbiologia Zootécnica. Editora Roca: São Paulo, 1992.
Lentin, J-P., Penso, logo me engano. Editora Ática: São Paulo, 1996.
Ruiz, W. Comunicação pessoal.
Nota do Editor:
A imagem associada a esta postagem ilustra recorte da obra: “Monsieur Babinet alerted by his housekeeper of the arrival of the comet”, criada pelo caricaturista, chargista, pintor e ilustrador francês Honoré-Victorien Daumier (1808 – 1879).
Em complemento, assista ao vídeo anexo e conheça mais sobre Alexander Fleming e a descoberta do antibiótico: