“O bem que o Estado pode fazer é limitado; o mal, infinito. O que ele nos pode dar é sempre menos do que nos pode tirar.”,
Roberto de Oliveira Campos (1917 – 2001): economista, diplomata e político brasileiro.
A velha lei cristã que nos ensina a tratar com respeito, cortesia e amabilidade as pessoas é uma regra irredutível de conduta individual, uma regra que não possui flexibilidade ou brechas que permitam interpretações deturpadas. Trata-se de um axioma básico para que toda a cooperação social e coexistência humana seja pacífica e produtiva. Com efeito, trata-se de um alicerce indispensável para toda e qualquer civilização que queira prosperar.
No entanto, é inegável que estejamos, de maneira inconsciente e gradativa, solapando a rigidez deste alicerce. E tal procedimento já vem ocorrendo há várias décadas, de modo que aquele outrora robusto alicerce hoje se tornou apenas um pequeno toco não mais capaz de sustentar com vigor as relações inter-humanas e a toda a vida social.
É verdade que a lei do amor ao próximo ainda fundamenta grande parte de nossas relações individuais diretas. Dentro de nossas famílias, praticamos — ou ao menos nos esforçamos para praticar — este mandamento. Em nossas relações diretas com nossos parentes próximos e até mesmo com nossos vizinhos, nos esforçamos para não infligir nenhum dano sobre eles e suas famílias. Uma relação amistosa e cordial ainda é algo mais frequente do que uma relação maliciosa e destrutiva. Em todas as nossas interações sociais, sejam elas associações econômicas ou quaisquer outras relações casuais, basicamente respeitamos os direitos e a liberdade de nosso semelhante.
Mas tudo isso se altera quando entra em cena o Estado. Ou, colocando de outra forma, tudo isso se altera quando vemos no Estado uma ferramenta legítima para a imposição e a consecução de nossas demandas.
Com o Estado, somos indivíduos transfigurados. Somos outros. Com este organismo político, não há espaço para a lei do amor ao próximo; não há espaço para a cortesia, para o respeito e para a amabilidade. Quando agimos utilizando o Estado para atender às nossas demandas políticas, agimos de uma maneira que um indivíduo minimamente escrupuloso jamais sonharia em agir em suas relações inter-humanas diretas. Não há espaço para a cortesia e para o respeito ao próximo quando fazemos do Estado o sistema canalizador de nossas demandas.
Considere os seguintes exemplos.
Como pais, não pensamos em coagir nosso vizinho para que ele contribua para a educação de nossos filhos. Porém, como membros de um organismo político, recorremos à tributação com o intuito de coagi-lo a financiar a educação de nossos filhos, de modo que eles tenham “educação pública, gratuita e de qualidade”. De quebra, isso faz com que nos sintamos “liberados” das nossas obrigações morais e pessoais para com nossos próprios filhos. Alguém que quisesse propositalmente criar uma sociedade de pais indolentes e negligentes dificilmente teria uma ideia melhor.
Como seres humanos, não pensamos em surrupiar nosso vizinho de toda a sua poupança e aposentadoria. Porém, como seres políticos, defendemos que o valor delas seja brutalmente reduzido por políticas governamentais de aumentos de gastos, de crédito fácil e de empréstimos subsidiados para pessoas e empresas de que gostamos.
Como indivíduos, não pensamos em encarecer artificialmente aqueles produtos que nosso vizinho mais pobre consegue comprar. Como membros do corpo político, consideramos perfeitamente normal obrigá-lo a pagar mais caro por meio de políticas governamentais de desvalorização cambial e de imposição de tarifas de importação, as quais visam a proteger aquelas empresas ineficientes pelas quais temos alguma preferência.
Como pessoas caridosas, jamais pensaríamos em atacar a herança de uma viúva e de seus órfãos, e jamais pensaríamos em coagi-los para que eles nos colocassem como co-herdeiros. Como membros do corpo político, podemos obrigá-los a repassar boa parte de sua herança para nós por meio de um imposto sobre heranças.
Como indivíduos, não pensamos em extrair, por meio da violência ou da ameaça de violência, nenhuma fatia da riqueza ou da renda do nosso vizinho rico. Porém, em nossa vida política, estranhamente passamos a nos sentir livres e moralmente desimpedidos para exigir que boa parte de sua renda seja confiscada por meio de impostos (e que esse dinheiro seja utilizado da maneira como aprovamos).
Como empreendedores, não cogitamos obrigar nossos concidadãos que vivem em outras partes do país a nos auxiliar em nossos empreendimentos locais; como participantes do sistema político, obrigamo-los a nos ajudar a alcançar nossos objetivos econômicos por meio de subsídios, repasses obrigatórios e outras contribuições governamentais.
Dois parâmetros distintos de moralidade
Se homens malvados e violentos tentassem confiscar os ativos físicos do nosso vizinho (como um imóvel, por exemplo), nós corajosamente sairíamos em sua defesa. Se ele porventura ferisse ou até mesmo matasse um de seus agressores, iríamos absolvê-lo de qualquer acusação criminosa por ter agido em legítima defesa.
No entanto, se este mesmo vizinho, por ter se recusado a ter seus bens confiscados pelo Estado por não ter pagado devidamente seus impostos, viesse a ferir ou até mesmo a assassinar em legítima defesa um “representante do Estado” que foi à sua propriedade para confiscá-la, iríamos condená-lo por ter se recusado a abrir mão de parte de sua riqueza e por consequentemente ter privado o governo de utilizá-la para financiar aqueles programas de que gostamos. E com toda a nossa fúria e desejo de vingança, defenderíamos que ele fosse jogado em uma penitenciária e por lá ficasse “por um bom tempo”.
Utilizamos dois padrões distintos de moralidade para mensurar nossos feitos e atitudes. Somos rápidos e severos para condenar os delitos que nosso vizinho comete. Mas somos incapazes de julgar com a mesma severidade nossas próprias ações quando estas são efetuadas por meio do sistema político.
Condenamos um vizinho quando este comete roubo, sequestro, assassinato, esbulho, fraude e usurpação contra nossos semelhantes. No entanto, somos incapazes de fazermos um autojulgamento quando defendemos que o governo confisque a riqueza alheia por meio de impostos, sequestre aqueles indivíduos que não “pagaram devidamente” esses impostos, assassine aqueles indivíduos que oferecerem resistência a este sequestro, reduza a poupança e o poder de compra da população por meio da impressão de dinheiro (falsificação) e da restrição de compras de bens estrangeiros bons e baratos (tarifas de importação), estatize ou assuma forçosamente o controle majoritário de empresas privadas, e usurpe por meio de regulamentações e burocracias o direito de indivíduos exercerem atividades econômicas que concorram com as empresas favoritas do governo.
Duas almas em nosso peito
Condenamos um indivíduo por desconsiderar suas promessas, seus acordos e seus contratos, e nos esforçamos para fazê-lo cumprir suas obrigações contratuais por meio de ações judiciais e de outros meios legais ao nosso dispor. Mas prontamente condescendemos com práticas governamentais que desprezam promessas e até mesmo os mais básicos mandamentos éticos. Podemos até mesmo chegar ao cúmulo de nos simpatizarmos com políticas explicitamente ilegais e condenar aqueles que são prejudicados por elas e que agiram em legítima defesa para se proteger.
A realidade é que temos duas almas em nosso peito: uma que procura fazer o que é moral e eticamente certo, e outra que renega a própria existência de padrões morais e éticos. A humanidade já pagou, está pagando e ainda irá pagar um enorme preço por ter rejeitado os mais básicos princípios cristãos do respeito, da cortesia e do amor ao próximo na esfera da ação política, a qual só faz crescer. O preço foi, é e será pago na forma de escravidão, guerras e crescentes tensões sociais.
Escrito por Hans F. Sennholz (1922 – 2007). Traduzido por Leandro Roque.
Publicado originalmente por Instituto Ludwig von Mises Brasil, em 30 de novembro de 2015.
Sobre o autor:
Primeiro aluno Ph.D de Mises nos EUA. Ele lecionou economia no Grove City College, de 1956 a 1992, tendo sido contratado assim que chegou. Após ter se aposentado, tornou-se presidente da Foundation for Economic Education, 1992-1997. Foi um scholar adjunto do Mises Institute e, em outubro de 2004, ganhou prêmio Gary G. Schlarbaum por sua defesa vitalícia da liberdade.
Em adendo, assista ao debate sobre ética e moral no mundo contemporâneo.
Discussão entre o filósofo, escritor, educador e jornalista Olavo de Carvalho, e o doutor em teologia e frei dominicano Carlos Josaphat, realizada em 1998 pela TV PUC, com mediação do filósofo, educador e escritor Mário Sérgio Cortella.