O que é mais importante: a viagem ou o destino?

O voo das sementes de um dente-de-leão

Não temos exatamente uma vida curta, mas desperdiçamos uma grande parte dela. A vida, se bem empregada, é suficientemente longa e nos foi dada com muita generosidade para a realização de importantes tarefas. Ao contrário, desperdiçada no luxo e na indiferença, se nenhuma obra é concretizada, por fim, se não se respeita nenhum valor, não realizamos aquilo que deveríamos realizar, sentimos que ela realmente se esvai. Desse modo, não temos uma vida breve, mas fazemos com que seja assim.
Sêneca (5 a. C. – 65 d. C.)



“Seja bem-vindo a bordo do único voo sem número. Nosso destino é o Aeroporto Internacional David Hilbert1, o qual lhe remeterá ao infinito. Não há escalas e não agradecemos por sua preferência; afinal, você não teve escolha, mas foi escolhido. Seja grato!

Neste momento, solicitamos sua atenção aos procedimentos de segurança observados nesta e nas demais fases desta viagem (que já se iniciou, e você talvez tenha ignorado). Todavia, alertamos que pouquíssimo controle lhe será dado. Evitar ações perigosas é prudente; contudo, atar os cintos, evitar bebidas alcoólicas e adotar todos os procedimentos defensivos que você possa conhecer não lhe garantirá segurança total — não existem proteções infalíveis contra desconfortos e enfermidades, e gozar de saúde plena não impedirá o pouso, que, aliás, deve ocorrer nos próximos dias ou décadas (é dificílimo afirmar que nosso destino será atingido em algumas horas, mas muito provavelmente não teremos autonomia superior a um século).

Será desnecessário avaliar o tempo todo em qual fase da viagem você se encontra, mas é necessário sempre considerar o trajeto já realizado, e vital corrigi-lo ininterruptamente. Como a jornada pode ser longa, não despreze, como muitos, o bem valiosíssimo que é o tempo: aplique-o bem durante todo o percurso. Atente também para o fato de que seus pertences estarão ficando cada vez mais para trás, enquanto sua essência vai tomando a forma sob a qual você imigrará.”

Assim que o comissário, Sr. Celestino, cessou de infundir esses avisos à minha consciência, deixei de pensar na viagem e comecei a ponderar sobre o destino. Como nos deslocaremos por lá? Em um local infinito não há espaço para mapas. Um carteiro só é capaz de efetuar uma entrega por atuar em uma área circunscrita e, consequentemente, dotada de referências; no infinito, porém, não cabem referências ou delimitações. O infinito não é divisível nem passível de acréscimos ou reduções, ele é simplesmente infinito. Se pegássemos um livro com infinitas páginas e começássemos a arrancar diversas delas, isto significa que, em determinado momento, o livro haveria de tornar-se finito? Evidentemente não, pois, se assim fosse, poderíamos perguntar quantas páginas deverão ser acrescentadas a qualquer obra de modo a torná-la infinita. Em um espaço infinito, não se pode dizer que “nestes metros quadrados há um belo jardim”, da mesma maneira que não se pode dizer que entre as páginas “X” e “Y” de um livro infinito há um belo poema. Mapear o infinito significaria nele determinar, por exemplo, um centro, quando na realidade apenas se poderia afirmar haver ali infinitos centros ou nenhum.

Entretanto, enquanto muitos creem que ao término de nossa jornada encontraremos a eternidade, outros creem na nulidade, e, curiosamente, é possível encontrar, de certo modo, similaridades entre ambos os posicionamentos. Afinal, o nada é tão passível de divisão quanto o infinito; dividir um tempo infinito em dias é tão ilógico quanto dividir nenhum tempo em algumas horas. Por outro lado, quando afirmamos que somos etenos, na verdade estamos querendo dizer que somos eviternos, ou seja, que não existíamos desde sempre, mas que, uma vez entrando na existência, existimos infindavelmente, além do mais a eternidade comumente é considerada como a presença simultânea de todos os eventos2 e não a infinitude do tempo.

Para ponderar um pouco mais sobre a nossa existência, imaginemos dois irmãos que caminhassem juntos e, tropeçando em uma misteriosa vala, retrocedessem a meados do século XIII. Não havendo como retornar por ela, logo chegam à conclusão de que não reencontrarão seus pais, uma vez que não poderão viver por diversos séculos. Entre eles começam a surgir indagações plausíveis, a partir de experiências comuns. O caçula frequentemente questionava: “Mesmo se pudéssemos viver por séculos, ao atingirmos a data em que caímos, nossos entes queridos ainda iriam existir?”. Eles analisavam incansavelmente uma história da qual estavam saturados de ouvi-la: o avô dos jovens havia conhecido sua esposa em uma loja de ternos, após um fatídico pombo ter defecado em abundância sobre suas roupas, fazendo-o entrar em uma loja até então desconhecida. Estava naquela cidade pela primeira vez, em visita única em função de uma reunião de trabalho, convocada às pressas devido a um problema raríssimo na fábrica em que trabalhava, ocorrido somente naquela ocasião e nunca mais. Por causa de tais cadeias de acontecimentos, os jovens se perguntavam se tudo aconteceria outra vez e exatamente da mesma maneira. Também refletiam o seguinte: “Se Deus existe, atender preces é algo complicadíssimo! O vovô rezou para que não desse nenhum problema no trabalho, mas se ele tivesse sido atendido, nós provavelmente não existiríamos”.

Ampulheta pequena (cantos esfumaçados)Seguramente não há “valas no tempo”; certamente, os pombos e os escorregões poderão seguir favorecendo os casamentos e as gerações futuras. Mesmo assim, normalmente nos lembramos, quando muito, “apenas” de que, para nascer, foi preciso que vencêssemos uma corrida contra aproximadamente 300 milhões de concorrentes— número de espermatozoides que nadam em direção ao útero —, ignorando que não estaríamos nem mesmo nessa corrida se nossos antepassados não fossem também vencedores das suas e, “sortudos” dentro de uma cadeia inabarcável de eventos. Se pudéssemos espiar os séculos anteriores ao nosso nascimento, talvez consideraríamos mais crível a vida após a morte do que nosso próprio surgimento.

Inegavelmente nossos pais foram gerados pelos nossos avós, que foram gerados por nossos bisavós, e assim regressivamente — não infinitamente. Trata-se de uma cadeia divisível; se fosse infinita, não contaríamos com a primeira geração, e consequentemente nem com a última, nem com as intermediárias. Entre as cinco vias tomistas, a impossibilidade de termos ancestrais infinitos exemplifica concisamente a lógica sobre a qual repousa a segunda, que, assim como as demais, remete a um único destino: evidenciar a existência de Deus.

Neste ponto, é preciso reconhecer que não importa a via utilizada e nem mesmo o ponto em que nos encontramos durante a viagem: o destino será avistado em lusco-fusco — não pela pequenez, mas pela grandiosidade. Diante de tamanha dificuldade, é prudente mitigá-la acessando a Prova da Causa Eficiente, nome da segunda via, pelas próprias palavras de Santo Tomás de Aquino:

“A segunda via procede da natureza da causa eficiente. Pois, descobrimos que há certa ordem das causas eficientes nos seres sensíveis; porém, não concebemos, nem é possível que uma coisa seja causa eficiente de si própria, pois seria anterior a si mesma; o que não pode ser. Mas, é impossível, nas causas eficientes, proceder-se até o infinito; pois, em todas as causas eficientes ordenadas, a primeira é causa da média e esta, da última, sejam as médias muitas ou uma só; e como, removida a causa, removido fica o efeito, se nas causas eficientes não houver primeira, não haverá média nem última. Procedendo-se ao infinito, não haverá primeira causa eficiente, nem efeito último, nem causas eficientes médias, o que evidentemente é falso. Logo, é necessário admitir uma causa eficiente primeira, à qual todos dão o nome de Deus.” (Suma Teológica, Prima pars, Questão 2, Art. 3.)

Portanto, Deus é a causa das causas não causada. Esta prova foi descoberta por Sócrates, que morreu dizendo: “Causa das causas, tem pena de mim”. Você pode estar pensando que leu até aqui apenas para atingir o famoso paradoxo sobre quem ou o que deu causa a Deus, mas nesta indagação há um equívoco; nas palavras de Millard Erickson, equivale a questionar: “Quantas polegadas tem o cheiro da rosa?”, ou: “Qual é o sabor do acorde musical Dó?”3, pois, ao se especular sobre quem causou a Causa Não Causada, comete-se, como nas questões colocadas por ele, uma falha conhecida como erro de categoria. Sendo assim, o correto seria avaliar quais são as características indispensáveis para que algo seja uma Causa Não Causada, e desde já é possível antecipar que imaterial e atemporal são dois requisitos necessários.

O criador de Pinóquio é Gepeto; Pinóquio jamais poderia criar Pinóquio, pois, para tanto, precisaria agir antes de sua própria existência. O mesmo vale para a árvore da qual resultou a madeira que possibilitou a criação do boneco, e para a semente desta árvore, e assim regressivamente. Enfim, nenhuma matéria orgânica ou inorgânica é capaz de produzir a si mesma. Sendo o universo composto por matéria — em constante mudança (movimento) —, é, pois, possível descartá-lo como Causa Primeira. A teoria mais amplamente aceita atualmente para a origem do cosmos, a Teoria do Big Bang, preconiza que o universo não seja “autoexistente”, mas que tenha passado a existir — “algo” o causou.

Matéria, espaço e tempo são componentes entrelaçados. Toda matéria exige algum espaço para acomodá-la, e o tempo é o cárcere onde toda mudança decorre. Curiosamente, ou necessariamente, a Teoria do Big Bang pressupõe que, além da matéria, o espaço e o tempo também tenham “nascido” na grande explosão4. No entanto, o único objetivo aqui é atentar para o quão plausível é considerar que a origem do tempo esteja fora do tempo5, e que a causa do espaço seja não espacial. Em outras palavras: considerar que o mundo físico tenha sido causado por algo externo à matéria, ao espaço e ao tempo é racional e compatível com a principal teoria cientifica em voga.

Por fim, imaterial e atemporal são, justamente, atributos de Deus. Por outro lado, quando ateus se perguntam para que servem as nuvens, ou por qual motivo os cangurus possuem cauda, demonstram geralmente uma incompatibilidade com suas crenças. Acontecimentos aleatórios realmente podem provocar casamentos e gerações futuras, mas crer que o acaso tenha produzido o universo (matéria, tempo, espaço e tudo o que nele há) não é crença, é crendice. Se o acaso é a Causa Primeira, ou seja, se ele produziu toda a natureza, será que deveríamos encontrar funcionalidades específicas e harmônicas em tudo? Se sim, acredito no acaso como o escritor Percival Puggina, que escreveu: “Esse nada deu origem a tudo em seis dias e no sétimo descansou”.6 Evidentemente, se considerássemos a matéria como algo eterno (“autoexistente”) e todas as suas resultantes como obras do acaso, ainda estaríamos diante de incógnitas colossais, podendo nos perguntar, por exemplo: estando tudo em constante movimento (mudança) e não podendo haver infinitas mudanças, qual centelha iniciou a primeira delas?.7

As Quatro Causas são respostas que Aristóteles fornece para quatro questões associadas a quaisquer mudanças, e certamente auxiliam na compreensão dos conceitos acima e favorecem o entendimento das vias tomistas,8 sobretudo a segunda. São elas as causas formal, material, eficiente e final. Para compreendê-las, basta um exemplo. Quando um confeiteiro faz um bolo, podemos dizer que farinha, ovos, manteiga e demais ingredientes enquadram-se como causa material; esses ingredientes, ao final do processo, transformam-se no bolo de fato, com todas as suas características, ou seja, tomam a sua forma: aí encontramos a causa formal; mas os ingredientes não se misturam a si mesmos, e podem também ser combinados de modo a formar iguarias diferentes, pelo que podemos afirmar que o confeiteiro, então, é a causa eficiente; já a causa final refere-se à finalidade, à intenção em vista da qual este confeiteiro desejou fazer o bolo, ou seja, para vendê-lo, para comê-lo, para animar uma festa de aniversário, e assim por diante.

Representação do DNA (tons de azul e bordas esfumaçadas).Ao observarmos cada ente no universo, costumamos buscar sua causa final e, normalmente, mais cedo ou mais tarde, a encontramos. Portanto, é razoável deduzir que haja também uma causa eficiente, eficiente por possuir inteligência. Seja na pequenez exposta pelos microscópios ou na grandeza demonstrada pelos telescópios, a inteligência se faz necessária — o DNA9 e o Ajuste Fino do Universo10 são bons exemplos disso.

Como não temos controle sobre o clima, costumamos levar, em nossas viagens, roupas adequadas ao calor e ao frio, guarda-chuva e óculos de sol. Mas quanto à nossa principal viagem — aquela que é única e de cujo destino jamais voltaremos — será prudente ignorar que possa ter uma causa final e, consequentemente, não atentar ao que para ela estamos levando? Pascal acreditava que não; ele postulava ser mais valioso viver dentro de um ponto de vista cristão, pois, se Deus não existir, a perda será finita, mas se Ele existir, o ganho será infinito. Hoje, com a Teoria do Big Bang, a complexidade do DNA, o Ajuste Fino do Universo e outros fatores, em vez de apostar, seria mais válido questionar: o que é mais importante — a viagem ou o destino?

Só posso encerrar desejando-lhe uma boa jornada. Mas se ela estiver desconfortável, lembre-se: uma viagem pouco agradável que nos leva a um destino maravilhoso é preferível a uma excursão maravilhosa que nos lance em um destino horroroso.


Escrito por Eric M. Rabello.


Notas:


  1. Conjeturando um hotel com infinitos quartos, o matemático alemão David Hilbert (1862 – 1943) expôs didaticamente os paradoxos decorrentes dos conjuntos infinitos, alusão que ficou conhecida como Hotel de Hilbert. Cf. O hotel de Hilbert, de William Lane Craig. Disponível em https://culturadefato.com.br/o-hotel-de-hilbert. Subir
  2. Para mais informações é válido consultar a obra De Consolatire Philosophie, escrita pelo filósofo Boécio (480 – 524 ou 525). Subir
  3. Cf.: Quem ou o que causou Deus?, de Millard Erickson. Disponível em https://culturadefato.com.br/quem-ou-o-que-causou-deus. Subir
  4. Cf.: O que havia antes do Big Bang, disponível em https://super.abril.com.br/ciencia/o-que-havia-antes-do-big-bang. Subir
  5. Sendo o tempo divisível, é prudente não considerá-lo infinito, mas algo que passou da não existência à existência. Subir
  6. Cf.: Ateísmo militante, de Percival Puggina, disponível em: https://culturadefato.com.br/ateismo-militante. Subir
  7. A impossibilidade de infinitos movimentos não envolve apenas conceitos filosóficos, mas afetam também as leis da termodinâmica. A primeira lei da termodinâmica afirma que a quantidade de energia no universo é constante, portanto finita; a segunda lei da termodinâmica aponta que estamos consumindo energia. Assim, o “movimento do universo” não pode ser infinito. Subir
  8. As vias tomistas resultam de uma longa tradição, envolvem sobretudo Sócrates (470 a. C. – 399 a. C.), Platão (427 a. C. – 347 a. C.) e Aristóteles (384 a. C. – 322 a. C.). Subir
  9. Cf.: A matemática da impossibilidade, de Joe Coffey, disponível em https://culturadefato.com.br/a-matematica-da-impossibilidade. Subir
  10. Cf. meu artigo Sorte em abundância ou razão em escassez?, disponível em https://culturadefato.com.br/sorte-em-abundancia-ou-razao-em-escassez. Subir


Compreenda todas as vias tomistas, leia:



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