O barbeiro e São Tomás de Aquino

Obra: "Barbershop at Christmas Time", por William A. Smith (1918 - 1989).

Não se opor ao erro é aprová-lo. Não defender a verdade é negá-la.
São Tomás de Aquino (1225 – 1274)



“Sou apenas um barbeiro”, disse Salomão depois que elogiei o livro que ele havia indicado e as previsões políticas que havia acertado. Em seguida, educadamente, me perguntou: “Você chegou com muita antecedência, então atenderei primeiro ao Dr. Lucas. Tudo bem?”. Aceitei, peguei um periódico e me sentei. Minha leitura, porém, não se iniciou; enquanto folheava a revista, acabei desviando minha atenção para a conversa entre o neurocirurgião, Dr. Lucas, e Salomão. Não sei como iniciaram o diálogo, mas certamente as explicações sobre o funcionamento dos neurônios deixavam Salomão maravilhado. Na verdade, ele havia ficado tão concentrado na revelação do conteúdo interno da cabeça que poderia, naquele cliente, ter se esquecido do visual exterior dela.

Conversa entre barbeiro e cirurgião finalizada, corte realizado: chegou minha vez.

Logo nas primeiras tesouradas, deixei claro que havia escutado o diálogo anterior, dizendo também o quanto, assim como ele, havia considerado tudo aquilo curioso. No entanto, Salomão acabou desviando o assunto, dizendo: “Tive uma única profissão e passei a maior parte de minha vida dentro deste salão. Como você sabe, esta região tornou-se nobre e, consequentemente, meus clientes são majoritariamente economistas, médicos, engenheiros e outros profissionais dos quais uma boa formação foi exigida. Eu tive pouco estudo formal, então ouço a todos sem impugnar – se eles estiverem errados, o tempo dirá. No entanto, por observação, é nítido que eles erram pouco dentro de suas áreas e muito fora delas”.

Cabelo cortado, serviço pago. Disse ao meu amigo: “Até a próxima vez!”, sem saber que, infelizmente, aquela teria sido a última. Faz uma década que Salomão faleceu.

Todas essas lembranças ascenderam hoje, quando encontrei o filho de Simão (outro cliente de Salomão), um economista e ex-cliente daquela barbearia. Não me recordo seu nome, mas jamais me esqueci do quanto o rapaz era certeiro em assuntos financeiros e sofrível – ao ponto de hilaridade – quando explanava sobre quaisquer outros aspectos. Se a conversa no salão era a de que “Fulano é inteligente”, então o profissional das finanças dizia: “Sim, pois tem dinheiro para pagar bons estudos”; se sobre a mesma pessoa era dito que “o sujeito é inepto”, afirmava: “Ele tem muito dinheiro, só quer aproveitar a vida e, consequentemente, ignora as dificuldades”; se falávamos sobre uma boa ou má safra de café, o rapaz não receava em afirmar o dinheiro como principal ou único fator da alta ou baixa colheita.

Equilíbrio (representado por pedras empilhadas - mar ao fundo da imagem). Tamanho Pequeno.Em suma, o economista notavelmente julgava (e ainda julga) o dinheiro como “motor” e “centro do mundo”, “local” no qual permanece intimamente conectado e a partir de onde ele crê tudo testemunhar e tudo compreender. Em analogia, a cachola do profissional detém muitas “peças” do mercado financeiro – as quais manipula com perfeição –, mas também se assemelha a um grande quebra-cabeças que, ao receber peças de outros quebra-cabeças diferentes, apenas amplifica a confusão, mesmo quando não a percebe.

Entretanto, em minha curta conversa com o filho de Simão, notei que as rugas pareciam tê-lo deixado mais simpático. Teceu elogios ao falecido e, inclusive, em certo momento, disse: “A maneira pela qual eduquei e ainda educo meus filhos é, geralmente, o repasse das ideias ditas por Salomão”. Ainda mais notável foi seu último comentário, pouco antes de nos despedirmos, quando afirmou: “Estou trabalhando intensamente. Nesta última década, o mercado financeiro sofreu grandes mudanças; como consequência, estou precisando reaprender muito. Na verdade, quase tudo”. O conhecimento do pobre barbeiro havia sido transmitido aos netos de Simão, mas a sabedoria do rico economista precisou ser rescindida e reconstruída em dez anos.

Contudo, se algo foi completamente transformado, não significa que, em período anterior, tenha sido total ou parcialmente inútil. Se amanhã todos os veículos se tornarem autônomos, não resultará frívolo o trabalho exercido pelos motoristas das épocas passadas; ao contrário, eles terão sido os promotores desta mudança, seja de modo consciente e direto (como transportando um engenheiro automotivo ao trabalho), seja indireta ou até mesmo inconscientemente.

Neste ponto, é válido interrogar: são mais importantes os motoristas, engenheiros, barbeiros, economistas ou neurocirurgiões? Claramente, tal questionamento é horripilante. No entanto, há alguma possibilidade de se mensurar o valor de um ser humano? Certamente, este não deve ser calibrado proporcionalmente aos bens materiais, ao conhecimento ou à profissão. Na verdade, não há como medir o valor de cada indivíduo de modo preciso, talvez seja possível apenas obter algum parâmetro por meio do cristianismo. Cristo não veio para ser servido, mas para servir (Mt 20:28), e, portanto, talvez o quanto uma pessoa doe de si aos outros reflita sua grandeza. Evidentemente, não se trata aqui exclusivamente da entrega da própria vida; certamente – e geralmente – basta a doação de minutos da sua atenção. Cada segundo de dedicação ao outro, entretanto, pode estar “recheado” de interesses próprios: “Não julgueis para não serdes julgados” (Mt 7:1); afinal, não somos onipresentes e nem oniscientes. Pouquíssimo ou nada conhecemos do íntimo dos outros.

Todavia, algo é certo: Salomão, em dado momento, não existia, depois passou a existir e, então, deixou de existir, e o mesmo “fluxo” está ocorrendo com todos nós. Em outras palavras, somos seres contingentes, de modo que existimos, mas poderíamos não existir e, certamente, deixaremos esta existência. Não há exceções. Uma pessoa considerada por muitos como “a mais importante” não foi gerada sob encomenda; a humanidade não disse: “Precisamos de alguém assim”. Tal ente apenas apareceu e desapareceu ou desaparecerá. Neste conceito jaz o cerne da terceira via tomista, comumente denominada prova da contingência, cujo destino é o de evidenciar a existência de Deus.

Prova da contingência


A existência não é intrínseca a nós, somos seres possíveis e não necessários. Aliás, uma rápida observação do nosso entorno será suficiente para deduzir que este fato é uma característica inerente ao mundo físico.

Você provavelmente está utilizando um computador ou celular para ler este texto, dispositivos que não existiam em épocas passadas. Ainda que o estivesse fazendo através de folhas de papel, não seria diferente: também a celulose e os eucaliptos são entes contingentes. Se você está sentado no banco de uma praça ou no sofá de sua casa, eu sei – mesmo que não saiba nada sobre você – que em certa época não havia o banco ou o sofá, e que em tempos mais remotos também não havia a praça e nem mesmo sua residência; ambas eram apenas possibilidades que vieram a ser concretizadas e que, futuramente, serão corrompidas1. Na realidade, se a Teoria do Big Bang estiver correta, a própria natureza (universo) passou da não existência à existência; difícil compreender, mas se assim foi, já houve total ausência de matéria e de espaço para alocá-la, consequentemente inexistindo o tempo – antes do Big Bang, não havia antes!

Evidentemente, a terceira via de São Tomás de Aquino não possui nenhuma dependência em relação à Teoria do Big Bang. O Doutor Angélico viveu na Idade Média, entre 1225 e 1274, enquanto a proposta elaborada pelo doutor em astrofísica e padre jesuíta Georges Lemaître (1894 – 1966) recebeu este nome, Big Bang, apenas em 19492. Na verdade, não faz sentido ancorar a “Realidade Última” em teorias cientificas, assim como não faz sentido um navio descarregar sua âncora em um barco. As ciências estão em constante mutação; para elas, a “última” teoria significa a mais nova teoria.

O historiador Orlando Fedeli (1933 – 2010), em um artigo intitulado Existência de Deus, expôs a terceira via recorrendo somente a fatores facilmente deduzíveis. Eis um trecho do escrito:

“Se todos os entes que vemos na natureza têm a possibilidade de não ser, houve tempo em que nenhum desses entes existia. Porém, se nada existia, nada existiria hoje, porque aquilo que não existe não pode passar a existir por si mesmo. O que existe só pode começar a existir em virtude de um outro ente já existente. Se nada existia, nada existiria também agora. O que é evidentemente falso, visto que as coisas contingentes agora existem.

Por conseguinte, é falso que nada existia. Alguma coisa devia necessariamente existir para dar, depois, existência aos entes contingentes. Este ser necessário ou tem em si mesmo a razão de sua existência ou a tem de outro.

Se sua necessidade dependesse de outro, formar-se-ia uma série indefinida de necessidades (…). Logo, este ser tem a razão de sua necessidade em si mesmo. Ele é o causador da existência dos demais entes. Esse único ser absolutamente necessário – que tem a existência necessariamente – tem que ter existido sempre. Nele, a existência se identifica com a essência. Ele é o ser necessário em virtude do qual os seres contingentes tem existência. Este ser necessário é Deus.”3

"A Criação de Adão", parte do afresco pintado por Michelangelo no teto da Capela Sistina entre os anos de 1508 e 1510, a pedido do papa Júlio II.Bertrand Russell tornou conhecido o Paradoxo do Barbeiro (do qual não se conhece o verdadeiro autor). A curiosa contradição é normalmente exposta por meio de uma simples afirmação seguida de um questionamento único. Em suma, sem cair em contrassenso, responda: “Em uma cidade, havia um barbeiro que barbeava a todos (e somente) os que não se barbeavam. Quem barbeava o barbeiro?”. Será que São Tomás de Aquino não nos induz a algo análogo? A resposta é não. Vejamos o motivo.

Em linguagem lógica, torna-se verdadeiramente paradoxal o conjunto composto pelo barbeiro e pelos homens da suposta cidade, mas, na vida real, reconhecemos que barbas necessitam de cortes e aparos nos quais vocábulos e conceitos não interferem. Números, símbolos e palavras são geralmente capazes de representar – ou confundir – a realidade, mas sempre incapazes de criá-la ou modificá-la. Além do mais, Bertrand coloca um conjunto matemático fazendo um desdobramento para “dentro” dele próprio, ao passo que São Tomás, em última instância, refere-se a um contexto metafísico, ou seja, não matematizável.

Enfim, a terceira via de São Tomás de Aquino não é um jogo de palavras ou mais uma entre diversas “lógicas paradoxais”, mas a exposição de uma realidade: aquilo que não existe não pode produzir seu próprio ser. Você e eu somos entes contingentes, assim como uma pedra ou um átomo; houve, portanto, uma época em que a pedra, o átomo, você e eu não existíamos. Como, então, tudo surgiu? A existência de múltiplos objetos contingentes dentro de um mesmo período (tempo), ou mesmo um único ente, em nada explica o fato de haver um simples grão de areia. Se a natureza passou a existir, não é então prudente supor que tenha sido produzida por um “fator externo” a ela e não contingente?

Talvez Salomão já possua a resposta. A nós, com essas e inúmeras outras evidências, basta que creiamos em Deus e sirvamos uns aos outros, pois Ele, mesmo diante de nossa pequenez e sem precisar de nada, deseja algo de nós – e isto, sim, é grandioso.


Escrito por Eric M. Rabello.


Notas:

  1. Não confundir com a primeira via, que demonstra a existência de movimento (dinamismo) no universo, onde um ente precisa de outro para ser movido (por exemplo, o ferro se decompõe em óxido de ferro, mas para isso é necessária sua união com o oxigênio; um objeto pode ser aquecido, mas não por ele mesmo, precisando receber calor de outro ou ser friccionado contra algo). Já a terceira via expõe que essa cadeia de movimentos é formada por entes contingentes e que, portanto, deve haver um Ente Necessário. Cf.: https://culturadefato.com.br/deus-existe-nada-prova-tudo-evidencia/. Subir
  2. O astrônomo Fred Hoyle (1915 – 2001) tentou, durante uma transmissão de rádio, aviltar a teoria proposta por Lemaître, denominando-a “Big Bang”. Subir
  3. Disponível em https://www.montfort.org.br/bra/cadernos/religiao/existencia/#3. Subir

Nota da editoria:

Imagem da capa: “Barbershop at Christmas Time”, por William A. Smith (1918 – 1989).



Compreenda todas as vias tomistas, leia:






Confira, neste áudio, alguns comentários do filósofo Olavo de Carvalho (1947 – 2022) sobre o Logos Divino:


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