“Querermos ser do nosso tempo é estarmos já ultrapassados.”
Eugène Ionesco (1909 – 1994)
Em 2012, uma velhinha, em Borja, cidade perto de Zaragoza, na Espanha, olhou para a imagem do Cristo, pintada por Elias Garcia Martinez, chamada Ecce Homo, e não gostou. Vendo-a desgastada e corroída pelo tempo, teve a ideia de restaurá-la. O resultado: uma caricatura; uma imagem que nada diz do Cristo original, mas muito revela da espécie à qual a velhinha pertence.
Essa senhora, na verdade, tornou-se um símbolo do espírito do nosso tempo. Reconhecemos, como ela, no Cristo, ainda alguma beleza, mas acreditamos que as marcas dos anos o danificaram demais. Contemplamo-nos, mas com um incômodo que nos provoca o querer reconstituí-lo.
Quantas vezes, queremos apresentar um ícone estimável aos olhos contemporâneos e vemos surgir em nós um ímpeto restaurador. Temos um constante impulso de querer reformá-lo. Então, da mesma forma que a senhorinha espanhola, lançamo-nos sobre o Nazareno, ávidos por restabelecer sua dignidade.
O problema é que, invariavelmente, apenas fazemos dele uma caricatura. Tentamos transformá-lo segundo nossas expectativas e acabamos gerando uma paródia.
O que mais espanta, porém, é a petulância da velhinha — ou seja, a nossa petulância. Quantas vezes acreditamos ser capazes de fazer do Cristo melhor e de ter o talento e os instrumentos para torná-lo apreciável? Queremos revivê-lo, baseados em nossas próprias concepções, de acordo com os nossos prismas pessoais, conforme nossa própria visão da vida. Derramamos, então, sobre ele, nossas tintas audaciosas, descuidadas e arrogantes. Borramo-no, assim, sem medo. Desfiguramo-no sem compromisso algum com o projeto original.
Achamo-nos aptos a oferecer um novo Deus para o mundo, porque acreditamos que o Cristo que surgirá de nossas mãos será muito melhor do que aquilo que está hoje. O resultado, porém, é idêntico ao quadro da velhinha de Zaragoza: nem uma nova imagem atraente, nem o renascer revigorado da antiga desgastada, mas um borrão do Cristo, que serve apenas de escárnio para o mundo inteiro.
Por Fabio Blanco.
Publicado no canal do Telegram do autor, em 24 de Março de 2024.
Fabio Blanco também é o responsável pelo portal filosofiaintegral.com.br, e seu wesite fabioblanco.com.br.
Nota da editoria:
Obra: “Ecce Homo”, de Elías García Martínez (1858–1934). Trata-se de uma pequena pintura localizada no Santuário da Misericórdia de Borja, Província de Saragoça, Espanha. À direita, é apresentada a pintura original; à esquerda, a obra após a restauração.