O ceticismo, e o império do subjetivismo pós-moderno

Obra: "Impressão II" (1910), por Wassily Kandinsky (1866 - 1944).

Não seria irracional que um homem preferisse a destruição do mundo, a uma esfoladela no seu dedo.
David Hume (1711 – 1776)

* Consulte notas



Eu estudei a História da Filosofia Ocidental, da autoria de Bertrand Russell. Sublinho: estudei; e há muito tempo. Estudar um livro é diferente de lê-lo. Tenho duas edições do dito livro: uma, para colocar na estante, impecável, sem pó; e outra, para rabiscar e sublinhar, desconjuntado. Normalmente é assim que faço: compro dois exemplares dos livros de filosofia.

A minha grande divergência em relação a Bertrand Russell não é apenas na ética, em geral, mas principalmente nos fundamentos da ética. Bertrand Russell — assim como Richard Dawkins — não consegue fundamentar a ética senão nos costumes que podem mudar a cada geração. Mas, em relação à Razão (racionalidade) e à Lógica, é difícil estar em desacordo com ele.

A ética, ou seja, os valores morais, devem ser (1) universais, (2) fundamentados racionalmente, (3) ter uma validade intemporal e (4) identificáveis nas suas características principais.

Ora, nestes quatro requisitos da ética, Bertrand Russell falha sistematicamente.

Neste texto de Bertrand Russell, transcrito pela professora Helena Serrão, um cético (Bertrand Russell) critica outro cético (David Hume). Porém, e daquilo que li de Bertrand Russell, o ceticismo deste é diferente do ceticismo de David Hume.

O ceticismo de Bertrand Russell é mais parecido com o da doutrina do grego Pirron de Élis (ceticismo pirrônico) que afirma que não podemos ter a certeza de alcançar a Verdade — mas que não nega a possibilidade da existência da Verdade.

Não devemos confundir a “dúvida céptica”, que tem por objetivo uma suspensão definitiva da opinião (David Hume), por um lado, e, por outro lado, a “dúvida metódica” (praticada por Descartes) que é provisória e estabelecida visando a descoberta da Verdade.

O referido texto é paradigmático desta diferença entre estes dois tipos de ceticismo. Porém, o ceticismo de Hume (ao contrário do que diz Bertrand Russell) não foi precedido por Kant e Hegel, quanto mais não seja por esta ideia ser anacrónica: o ceticismo de Hume já advém (evoluiu de) de Montaigne, e depois de Hobbes.

Segundo este ceticismo muito moderno [de Hume], a faculdade humana do conhecimento é uma coisa que contém conceitos, e já que ela não tem senão conceitos, não pode atingir as coisas que estão fora [desses conceitos].

(…)

Nenhum ser racional iria imaginar que pelo facto de “possuir” a ideia de uma coisa, ele possui igualmente essa coisa. Portanto, este cepticismo não é bastante consequente para mostrar, ao mesmo tempo, que nenhum ser racional não deva imaginar que possui uma ideia.

Com efeito, a ideia é também qualquer coisa; portanto, o ser racional não pode ter senão a ideia da ideia, e não a própria ideia; nem mesmo a ideia da ideia, porque esta ideia na segunda potência seria, portanto, a ideia da ideia, até ao infinito.

Hegel, “A Ciência da Lógica

A ideia de Russell segundo a qual “Kant e Hegel podem ser refutados com argumentos humeanos” é, ela mesma, irracional. Bertrand Russell “embarra” sistematicamente com as tautologias próprias da Existência — a começar pelo empirismo que ele tanto defende.

Eu também defendo a racionalidade do empirismo, mas este entendido como uma dimensão necessária da existência que não elimina, per se, a necessidade de outras dimensões da existência — ao passo que Russell pretendia reduzir a realidade inteira ao empirismo — incluindo a dimensão da matemática (dedução), através da teoria do Logicismo (de Russell e Whitehead).

Porém, o texto referido de Bertrand Russell tem o condão de explicar o Império do Subjetivismo (e da irracionalidade, que volta a estar na moda) que governa a nossa atual cultura pós-moderna.


Por Orlando Braga.
Originalmente publicado em 4 de maio de 2024, no website do autor.


Subir com fundo cinza Notas da editoria:

1. O artigo foi minimamente modificado. A versão original foi escrita em português de Portugal. Para acessá-la, clique aqui.

2. Imagem de capa: “Impressão II” (1910), de Wassily Kandinsky (1866–1944). A partir de 1910, a subjetividade passou a imperar nas obras deste pintor russo.


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