A visão positivista e compartimentada do ser humano

Retrato de Auguste Comte (1798 - 1857), filósofo francês. Gravura do século XIX. Autor desconhecido.

*Artigo minimamente modificado. A versão original foi escrita em
português de Portugal. Para acessá-la, clique aqui.



De tempos em tempos, a professora Helena Serrão transcreve bacoradas, quando, por exemplo, se pretende separar a norma ética e a norma jurídica, por um lado, e a norma de origem religiosa, por outro lado.

Ser “normativo”, por definição, é privilegiar valores ou até mesmo procurar impor valores; e somente uma comunidade de valores (qualquer tipo de religião) pode fundamentar a adesão a um juízo normativo.

Naturalmente que depende do que entendamos por “religião”. Por exemplo, o marxismo e/ou o cientismo são “religiões políticas” (Eric Voegelin).

“Quando Deus é mantido invisível, para além do mundo, os conteúdos do mundo tornam-se nos novos deuses; quando os símbolos da religiosidade transcendente são banidos, novos símbolos desenvolvem-se a partir da linguagem intramundana da ciência para lhes tomar o lugar”.

Eric Voegelin, Modernity without Restraint (CW5): Political Religions; The New Science of Politics; and Science, Politics and Gnosticism

De um certo ponto de vista, quase poderia dizer-se que, entre aqueles modernos que se proclamam não religiosos, a religião e a mitologia estão “ocultas” nas trevas do seu inconsciente — o que quer dizer também que as possibilidades de reintegrar uma experiência religiosa jazem, em tais seres, muito profundamente neles próprios.

Ou, numa perspectiva cristã, poderia dizer-se igualmente que a ausência de religião equivale a uma nova “queda” do homem: o homem não religioso teria perdido a capacidade de viver conscientemente a religião e, portanto, de a compreender e assumir; mas, no mais profundo do seu ser, ele guarda ainda a recordação dela, tal como, depois da primeira “queda”, e bem que espiritualmente cego, o seu antepassado, o Homem primordial, tinha conservado suficiente inteligência para lhe permitir reencontrar os traços de Deus visíveis no mundo.

Depois da primeira “queda”, a religiosidade caiu ao nível da consciência dilacerada; depois da segunda, caiu ainda mais profundamente, no mais fundo do inconsciente: foi “esquecida”.

Mircea Eliade, O Sagrado e O Profano — A Essência das Religiões, Lisboa, 2006, página 219.

A separação (como acontece no referido texto) da Natureza Humana em estruturas independentes entre si tem origem positivista. Só um burro não vê isso.

A partir do momento em que a doutrina positivista se encontra na base de uma discussão ideológica ― seja esta qual for ― é impossível raciocinar de outro modo senão obedecendo aos paradigmas do dogma (positivista), assim como a um programa de computador é impossível fazer outra coisa senão o que foi definido pela base do código do simbolismo da programação do softwareO dogma positivista é o software da nossa cultura (contemporânea).

Sobre este assunto, recomendo a leitura de dois livros de Mircea Eliade: “O Sagrado e O Profano — A Essência das Religiões”, Lisboa, 2006; e “Aspectos do Mito”, Lisboa, 1986.

Se possível ler, recomendo o livro em língua inglesa “The New Science of Politics (An Introduction)”, de Eric Voegelin.


Por Orlando Braga.
Originalmente publicado em 16 de abril de 2024, no website do autor.


Nota da editoria:

Imagem da capa: retrato do filósofo francês Auguste Comte (1798 – 1857), que é considerado o “pai do positivismo”. A gravura é do século XIX e de autoria desconhecida.


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