As tatuagens e a desfiguração do corpo

Obra: "Rosetta II" (2005), por Jenny Saville.

Um destes últimos dias — o que, de resto, faço em quase todas as semanas do ano — fui ao supermercado. Que tenha reparado, na ocasião, cruzei-me sucessivamente com três moçoilas, todas elas tatuadas: uma tinha o desenho de um golfinho no pescoço; outra, de um conjunto de estrelas também no pescoço; outra ainda, por sinal trajada de forma bastante imodesta, tinha mais um conjunto de estrelas, desta vez abaixo do ombro esquerdo, e o que me pareceu ser um sol no respectivo tornozelo direito. Pelo meio, ainda havia um “orc” com um caracter chinês grafado na zona da nuca. Pensei para comigo: estes são pequenos sinais evidentes de uma sociedade em avançado estado de decomposição e em processo de acelerado retorno à barbárie.
Via A Casa de Sarto: Pequenos sinais evidentes



A tatuagem moderna tem pouco a ver com as culturas dos povos primitivos; trata-se de um fenômeno cultural novo e muitíssimo mais nocivo do que as tatuagens das culturas arcaicas. Enquanto que, nas sociedades primitivas, a tatuagem tinha um valor de ordem, na sociedade atual tem um valor de desordem.

No homem das culturas primitivas — vulgo “bárbaro” — a tatuagem tinha um sentido religioso e comunitário. Podemos discutir se a religião dele era positiva e evoluída, ou não. Mas a verdade é que a tatuagem desempenhava uma função religiosa que ligava o indivíduo à comunidade.

Ora, o que acontece com a função cultural atual da tatuagem é exatamente o contrário da do homem primitivo: é a manifestação de uma anti-religiosidade básica e primária mediante a adoração do feio e da desfiguração do corpo, por um lado, e, por outro lado, é o divórcio do indivíduo em relação à comunidade, por intermédio de uma afirmação radical da identidade individual e da supremacia absoluta do valor da denominada “autonomia do indivíduo”.

A tatuagem revela também o masoquismo prevalecente em uma certa subcultura atual e o mimetismo preconizado por Georg Simmel mediante o conceito de efeito “trickle-down”. Um certo masoquismo e sadomasoquismo que prevalece em uma certa elite cultural tatuada — por exemplo, as estrelas POP e de cinema imiscuídas na cultura gayzista que é sadomasoquista por sua própria natureza, e na ideologia de neutralidade de gênero que nega a realidade objetiva da Natureza —, e esses valores negativos são transmitidos por mimetismo cultural através dos “me®dia” à sociedade em geral.

A assunção da tatuagem, à semelhança por exemplo do “coming-outgay, é uma espécie de “coming-out” anti-social e, por isso, anti-religioso. Não é possível separar o fenômeno da tatuagem atual, por um lado, dos valores estéticos negativos da moda controlada por criadores homossexuais, a partir da década de 1970, que criaram o modelo da mulher anoréxica que revela a imagem do prazer do pederasta, por outro lado.

Um fenômeno idêntico aconteceu com o consumo de drogas: começou por ser um fenômeno cultural de uma certa elite, passou à sociedade em geral e às classes mais baixas através da moda e mediante o efeito trickle-downe hoje é já uma cultura rejeitada tanto pelas elites como pela sociedade.

O significado (o valor do símbolo) não é o mesmo do do homem primitivo. A tatuagem no homem primitivo era um símbolo, e não apenas um signo ou sinal. O símbolo tem um conteúdo, em que é simbolizado o representado, enquanto que os sinais são escolhidos arbitrariamente. O símbolo, para além do significado cultural que o sinal também pode ter, tem um significado espiritual (relativo à experiência humana subjetiva e que adquire uma significação de experiência intersubjetiva e/ou coletiva, e por isso, religiosa) que o sinal não tem. Um sinal só passa a ser um símbolo quando passa a ter um conteúdo com relação a um representado, o que lhe retira a arbitrariedade previamente existente. Um símbolo é eminentemente intersubjetivo, e nunca se muda porque isso resultaria também na dissolução do seu significado intersubjetivo; um sinal pode ser mudado mantendo-se o seu significado anterior.

Portanto, enquanto que para o homem das culturas primitivas, a tatuagem era um símbolo(com respeito à religião e à sua ligação à comunidade), para o homem contemporâneo a tatuagem é apenas um signo ou sinal desprovido de qualquer religiosidade e de qualquer ligação ;intrínseca à comunidade.

A tatuagem pretende ser também a negação da uniformidade pós-modernista e a luta contra a homogeneização cultural, mas acaba por redundar numa uniformização e homogeneização formal da cultura, ou seja, mudam os conteúdos mas mantém-se uma forma cultural homogeneizada.

O valor da tatuagem, em relação à sociedade e ao contrário do que acontecia nas sociedades primitivas, é hoje um fenômeno cultural negativo porque se trata de uma auto-mutilação com um conteúdo e valor estritamente individual — na maior parte dos casos inestética, anética e por isso anti-religiosa —, desprovido de simbolismo intersubjetivo social e comunitárioRevela o fenômeno cultural atual da atomização da sociedade e do isolamento do indivíduo face ao Estado, que anuncia um novo tipo de totalitarismo que ameaça.


Por Orlando Braga.
O autor é editor do website Perspectivas.
Publicado originalmente no website Mídia Sem Máscara, em 3 de outubro de 2012.


Notas da editoria:

Imagem de capa “Rosetta II” (2005), por Jenny Saville.


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