Excerto da “Introdução crítica” escrita por Olavo de Carvalho, para a obra
Como vencer um debate sem precisar ter razão, de Arthur Schopenhauer
Publicada pela Editora Auster, sob ISBN número: 978-6580136100.
A síntese de dialética e lógica encontrava ainda uma expressão plástica no caduceu, o símbolo tradicional de Mercúrio, divindade astral que, desde os primórdios das Artes Liberais, era associada à dialética, no sentido medieval do termo: as duas serpentes entrelaçadas mostravam os movimentos dialéticos da mente, que se afastavam e aproximavam da reta verdade, representada pelo bastão central. A linearidade da demonstração lógica aparecia aí como um ideal de perfeição pelo qual se guiavam os movimentos reais da mente investigadora, por si sempre incertos e vacilantes 1.
Uma análise mais detida desse símbolo mostra a profundidade extraordinária do seu significado, onde este aspecto que estou apontando é só um entre muitos. Enquanto a lógica, raciocínio linear, pressupõe um domínio completo dos dados em jogo, a dialética tem como uma de suas funções descobrir os dados faltantes, e por isto não pode seguir a linha ideal do raciocínio demonstrativo, mas deve acompanhar, até certo ponto, as ondulações da mente humana e os contornos do objeto, quando é sinuoso. É um raciocínio “impuro”, que se modela pela pureza do ideal analítico, mas conserva um resíduo empírico e psicológico que, na pura demonstração lógica, não teria cabimento. Por exemplo: de um ponto de vista lógico, a negação de uma negação é uma afirmação: “A é igual a A” é o mesmo que “A não é não-A”. Psicologicamente, a recusa da negação de algo não é o mesmo que sua afirmação, e chega mesmo a ser o seu contrário: a revolta contra a frustração de um desejo não satisfaz a esse desejo, mas até aumenta a frustração; porque os desejos só podem ser satisfeitos por uma gratificação positiva. Logicamente, toda negação é afirmação do oposto, mas psicologicamente há muitos graus de negação, alguns excludentes entre si. Ora, nenhuma investigação pode se modelar diretamente pela natureza do objeto (para isto seria preciso conhecê-la de antemão), mas, obedece, em parte, ao jogo interno da mente e, em partes, às casualidades da fortuna investigativa. Por isto há um resíduo psicológico — logicamente “impuro” — na dialética: arte de investigação, é ciência prática que, como a ética, tem de se guiar menos pela pureza cristalina da demonstração do que pela flexibilidade da Φρονεσις, frônesis, sabedoria 2.
Escrito por Olavo de Carvalho.
Extraído da “Introdução crítica” do livro: Como vencer um debate sem precisar ter razão.
A obra aqui exposta é de autoria do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788 – 1860).
No entanto, a edição da Editora Auster conta com introdução, notas
e comentários do filósofo Olavo de Carvalho (1947 – 2022).
Notas:
- Comparar isto com a solução que dou ao conflito das interpretações que enfatizam um Aristóteles “aporético” ou um “sistemático”, em Aristóteles em Nova Perspectiva, pp. 125 – 135. V. tb. as referências a Mercúrio em O Jardim das Aflições § 17.
- Sobre a frônesis, v. Carlo Natali, La Saggezza di Aristotele, Napoli, Heliopolis, 1989.
Nota da editoria:
Este artigo foi originalmente publicado em 20 de agosto de 2020. A data de 4 de novembro de 2024 corresponde à última edição.