Bode expiatório

Anonymous

Excerto do segundo capítulo da obra “Deus: uma invenção?”.
Livro publicado pela editora É Realizaçõe, sob
ISBN: 978-85-8033-049-6.



O homem evoluiu num meio social que lhe impõe determinadas obrigações, as quais não estão presentes no plano animal, embora, hoje, falemos em “sociedades” para descrever grupos animais. Eu analiso essas obrigações a partir da noção de “mimetismo”, que os gregos chamavam de mímesis e que fazia Aristóteles dizer que o homem é o animal mais mimético de todos. Isso significa que, se os animais são miméticos, os homens são ainda mais. A imitação deve ser concebida não somente aos modos de falar e se comportar, mas em relação ao desejo. Os homens imitam os desejos uns dos outros e, por isso, estão destinados ao que chamo de rivalidade mimética, processo que existe entre parceiros sociais e que tende a se agravar constantemente pelo próprio fato de que a imitação repercute de alguma forma entre os dois parceiros. Quanto mais desejo esse objeto que você já deseja, mais ele lhe parecerá desejável, e mais, por sua vez, ele se mostrará desejável aos meus olhos. Dessa forma, sabemos que todas as rivalidades tendem a se exasperar. Nos animais, as rivalidades se manifestam nos combates, em particular pelas fêmeas. Porém, esses combates são mortais. O mimetismo não é tão poderoso a ponto de só parar quando um dos dois combatentes morrer, O combatente mais fraco se submete ao vencedor que por isso não o mata. Há muitos poucos crimes intraespecíficos nas espécies animais, mesmo entre os mais miméticos. No homem, é diferente, pois sabemos que o combate mimético pode se tornar infinito, e levar a essa primeira invenção humana: a vingança.



Chega um momento em que a rivalidade se torna tão forte que os objetos do debate são destruídos. Quando os homens brigam pela posse de um objeto, nunca podem se entender; vão continuar a lutar até que o combate seja decidido. Mas, durante a batalha, esse objeto vai muitas vezes ser destruído, e, a partir desse momento, o antagonismo passará a ser “puro”: ele sempre será mais forte, mas, o mimetismo não será mais relativo ao objeto, mas aos próprios antagonistas.

Uma reconciliação paradoxal torna-se possível: se todos os homens desejam a mesma coisa e nunca se entendem, porém, aqueles que odeiam juntos o mesmo adversário se entendem com muita facilidade. De certa forma, essa harmonia é o que chamamos de política! Também é o que eu chamo de mecanismo da vitima única, o mecanismo do bode expiatório.

Quando indivíduos são contaminados pelo contágio do adversário, ou seja, quando esquecem o seu próprio adversário para adotar o adversário do seu vizinho que parece mais atraente, chega um momento em que toda a comunidade está do mesmo lado contra um único individuo, e não sabe por que finalmente ele é o escolhido.

Finalmente, o herói mítico é uma vitima unanime: ele será morto por todo mundo. Todo mundo está contra ele, todo mundo transferiu a violência – e utilizo a palavra transferência com conhecimento de causa -, a ponto de toda a sociedade matar esse individuo. Esse fenômeno existe e tem um nome: chama-se linchamento unânime. Nos grandes textos sagrados, inclusive os textos bíblicos, percebe-se que o linchamento tem um papel extraordinário; nos mitos, na bíblia, e finalmente nos próprios evangelhos, de uma forma apenas atenuada. Em outras palavras, o assassinato coletivo tem em todos os textos religiosos um papel tão importante que pede uma explicação, e essa explicação é mimetismo, e não a culpa real da vitima.

O linchamento, por sua unanimidade, reconcilia a comunidade, e o personagem que foi linchado é visto como muito mau, pois, causou a violência da comunidade. Talvez tenha causado um parricídio e um incesto segundo a tese edipiana, muito frequente nos mitos (ao contrário do que Freud acreditava), mas parece muito bom a partir do momento em que a sua morte reconcilia a comunidade. Ele se torna, então, o deus arcaico, ao mesmo tempo muito bom e muito mau.

Em outras palavras, por trás do deus, há algo real, um mecanismo que chamo aqui de bode expiatório. Muitas vezes pensamos que as pessoas que têm um bode expiatório deveriam saber. Mas é exatamente isso: ter um bode expiatório é não saber que se tem um, é ver essa vitima como o verdadeiro culpado.


Extraído do livro “Deus: uma invenção?“.
Autores: René Girard (1923 – 2015) , André Gounelle e Alain Houziaux.
Publicado pela editora É Realizações, sob ISBN: 978-85-8033-049-6.


Nota:

Como descrito, a obra da qual originou esta postagem foi obrada por três intelectuais, no entanto todo o conteúdo deste excerto é de autoria de René Girard (1923 – 2015).


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