Nossa vida antes de nascermos

Recorte da obra: "The Wait and the Reward", criada em 2014 pela artista estadunidense Anna Rose Bain.

Não se acha a paz evitando a vida.”,
Adeline Virginia Woolf (1882 – 1941): escritora, ensaísta e editora britânica.



Há alguns anos, passei um fim de semana em casa de uns amigos no campo. Helen, minha anfitriã, estava grávida de sete meses e à noite costumava sentar-se sozinha diante da lareira, entoando docemente uma canção de ninar para o seu filho ainda por nascer.

Depois do nascimento da criança, Helen contou-me que essa mesma canção de ninar tinha efeito mágico sobre o bebê. Mesmo que estivesse chorando desesperadamente, acalmava-se logo que a ouvia. Sendo psiquiatra e interessando-me particularmente por experiências pré-natais, fiquei intrigado e curioso de saber se as atividades de uma mulher podem ter influência sobre seu filho ainda por nascer. Comecei a procurar literatura científica a fim de tentar compreender a psicologia da criança durante a vida intrauterina.

À medida que progredia em minha investigação, ia surgindo uma imagem completamente diferente da criança no seio materno, algo muito distinto daquele ser passivo e indiferente que nos é descrito nos tradicionais manuais de pediatria. As provas se vem acumulando há anos. No fim da década de 1960, por exemplo, descobrimos um sistema pós-natal de comunicação entre a mãe e o filho, e o obstetra francês Frédérick Leboyer, autor do livro Nascer sem Violência (1975), compreendeu intuitivamente que a criança, quando nasce, merece (de fato, exige) cuidados delicados e afetuosos. E muitos aspectos, a nova pesquisa é simplesmente o prolongamento lógico desta obra pioneira, prodigalizando amor e carinho à criança enquanto ela ainda se encontra dentro do ventre materno.

Quase tudo o que foi confirmado por estudos fisiológicos, neurológicos, bioquímicos e psicológicos se aplica à criança a partir do sexto mês de gestação. Pode-se dizer que, nessa altura, o feto já é um ser humano fascinante.

Henry Truby, ex-professor de pediatria, linguística e antropologia na Universidade de Miami, chama a atenção para estudos feitos desde 1960, que mostraram que o feto ouve distintamente a partir do sexto mês de vida intrauterina, e, o que é mais espantoso, reage às palavras da mãe. Também é sensível à musica, por vezes de modo bastante seletivo. Se pusermos um disco de Vivaldi, o feto mais agitado descontrai-se, mas Beethoven e toda música rock produzem efeito oposto na maior parte das crianças ainda no seio materno.

“Quando era jovem”, lembra Boris Brott, regente da Hamilton Philarmonic Orchestra, de Ontário, Canadá, “ficava perplexo com a facilidade com que dirigia certos trechos antes de tê-los estudado. Estava dirigindo uma partitura pela primeira vez e, de repente, as notas para violoncelo surgiram no meu espírito, e já conhecia a sequência da peça mesmo antes de ter virado a página”.

“Um dia, falei no assunto à minha mãe, que é violoncelista profissional. Pensei que ela ia ficar intrigada, pois era sempre a partitura para violoncelo que eu parecia conhecer antecipadamente. Quando lhe disse quais eram as obras, o mistério desvendou-se rapidamente. Ela tinha ensaiado todas essas partituras para um recital enquanto estava grávida, mas nunca havia voltado a tocá-las.”

Já em 1948, investigadores da Carolina do Norte ensinaram 16 bebês ainda não nascidos a reagir a vibrações, dando pontapés. Durante a vida intrauterina, as crianças ignoram, geralmente, essas sensações tão sutis, mas neste caso, os pesquisadores criaram nos bebês um reflexo condicionado ou adquirido, começando por fazer um forte ruído à pouca distância de cada mãe. Depois, introduziram uma vibração e o pontapé acabou por ser tão automático que os bebês passaram a espernear mesmo quando não ouviam ruídos antes da vibração.

Este estudo também mostra como os traços da personalidade e as características podem começar a delinear-se no útero materno. Todas as nossas preferências e aversões, medos e fobias, em suma, todos os comportamentos específicos que fazem de cada um de nós um ser único, são em parte resultados de aprendizagem condicionada dentro do ventre materno. Que pode, por exemplo, provocar num bebê ainda não nascido uma profunda ansiedade que determinará um comportamento futuro?

O fato de a mãe fumar é uma possibilidade. Foram efetuados alguns estudos que demonstraram os graves efeitos que o cigarro pode exercer sobre o feto: aceleração do ritmo cardíaco, diminuição no fornecimento de oxigênio e peso reduzido à nascença.

É claro que o feto não pode saber se a mãe está fumando, mas é suficientemente desenvolvido para reagir à sensação desagradável produzida pela queda do fornecimento de oxigênio. Os efeitos psicológicos do fumo são, provavelmente, ainda mais prejudiciais, pois pode imaginar-se que a redução do oxigênio provoca no feto um estado crônico de incerteza e medo. Ele nunca sabe quando vai de novo sentir essa sensação física desagradável, ou a dor que lhe vai causar, mas sabe, por experiência, que a sentirá novamente.

Mesmo uma coisa aparentemente tão prosaica como as batidas cardíacas da mãe têm um efeito psicológico. A criança parece considerar esse ritmo regular e tranquilizador como uma das principais constelações do seu universo. Isso ficou demonstrado há alguns anos, quando um hospital fez ouvir uma gravação das batidas cardíacas de uma mãe num berçário cheio de bebês recém-nascidos. Nos dias em que se ouvia a gravação, os bebês comportavam-se de modo tão diferente que até os investigadores ficaram surpreendidos. Passado um tempo, comiam mais, pesavam mais, dormiam mais, respiravam melhor e adoeciam menos vezes.

Quando faço conferências, as pessoas ficam desconcertadas se eu digo que as crianças antes de nascer conseguem aprender os pensamentos e sentimentos da mãe. As pessoas perguntam como podem elas decifrar mensagens maternas que significam “amor” e “conforto”, ou mesmo compreender a atitude da mãe em relação a elas.

O Dr. Gerhard Rottmann, da Universidade de Salzburgo, Áustria, observou 41 mulheres durante a gravidez até o parto, e concluiu que a atitude da mãe tinha influência decisiva sobre a evolução da criança. Ele dividiu as mulheres em quatro categorias emocionais. As Mães Ideais (porque desejavam a criança, tanto consciente como inconscientemente) tinham uma gravidez fácil, um parto sem complicações e uma criança saudável, tanto física como emocionalmente. As Mães Ansiosas, com atitudes negativas, apresentaram os mais complicados problemas médicos durante a gravidez, e davam à luz elevado número de crianças prematuras, de baixo peso e emocionalmente perturbadas. As Mães Ambivalentes eram aparentemente felizes, mas os fetos tinham herdado a mesma ambivalência subconsciente que fora detectada pelos testes psicológicos de Rottmann. Depois do parto, um número invulgar destas crianças apresentava problemas do comportamento e perturbações gastrintestinais. As Mães Indiferentes tinham várias razões para não desejarem ter filhos (uma carreira, problemas financeiros, e não estavam preparadas para o papel de mães), mas os testes de Rottmann revelaram que, subconscientemente, elas desejavam a gravidez. Os filhos receberam ambas as mensagens, o que parecia causar-lhes confusão. Depois do parto, muitas dessas crianças revelaram-se apáticas e letárgicas.



O Dr. Peter Fedor-Freybergh, de Estocolmo, Suécia, descreve com grande precisão um caso de alienação intrauterina. Ao nascer, Kristina era robusta e saudável, mas recusava obstinadamente o seio materno. O médico convenceu outra mulher a tentar amamentar a criança. Quando a enfermeira colocava Kristina, sonolenta, nos braços dessa mulher, a criança começava logo a mamar avidamente. Surpreendido com esta atitude, o médico interrogou a mãe de Kristina e descobriu que ela tentara abortar. “O meu marido queria a criança”, explicou a mãe. “Foi por isso que eu a tive.” Segundo Fedor-Freyberg, isso não era nenhuma novidade para Kristina, que há muito tinha consciência de rejeição da mãe.



Que dizer sobre a influência do pai? Poucas coisas afetam mais profundamente a mãe do que desentendimentos com o marido ou companheiro, e o apoio do pai é fundamental para o seu bem-estar e o da criança. Um estudo feito no princípio da década de 1970 revela que uma mulher que tem uma relação conjugal atormentada corre um risco de dar à luz uma criança psicologicamente perturbada 100% mais elevado do que uma mulher cujo casamento é estável e feliz. Algumas pesquisas demonstraram que a criança pode identificar a voz do pai, mesmo dentro do ventre materno, e depois de nascer reage a essa voz quando a ouve, pelo menos fisicamente. Se estiver chorando, por exemplo, para. Esse som familiar e tranquilizador parece transmitir ao bebê um sentimento de segurança.



Tais descobertas podem revolucionar a atitude dos pais em relação aos filhos. Com estes dados, as mães e os pais têm uma oportunidade única de influenciar os filhos, antes de eles nascerem, e de com eles criar laços afetivos que condicionarão a sua felicidade e o seu bem-estar, não só no meio materno, mas durante toda a vida.


Escrito por Dr. Thomas Verny e John Kelly.

Sobre os autores:
Dr. Thomas Verny é psiquiatra e professor do Instituto Santa Barbara.
Também lecionou na Universidade de Toronto e Harvard.
Fundou a Associação de Psicologia Pré e Perinatal.
É autor da obra: “A Vida secreta da criança antes de nascer”.

John Kelly é escritor especializado em assuntos médicos.

Fonte:
Revista Seleções do Reader’s Digest, edição de maio de 1983.


Nota do editor:

A imagem associada a esta postagem ilustra recorte da obra “The Wait and the Reward”, criada em 2014 pela artista estadunidense Anna Rose Bain.


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