Na igreja do diabo

Igreja do diabo

“A venalidade – disse o Diabo – era o exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo?”.

Puxei ao acaso da estante, anteontem, o livro de contos “Histórias sem data” de Machado de Assis. A narrativa que abre a coletânea chama-se “A igreja do Diabo”. Ao folheá-lo, me deparei com o período transcrito acima, sublinhado pela mão de minha mãe, que o lera em 1939. Tenho certeza de que a diabólica construção mental que o Capeta, entre outras igualmente criativas, urdira para atrair fiéis à sua igreja surpreendeu mais a jovem Eloah do que a mim. A ela, encantou a originalidade do raciocínio do Diabo. A mim, que me tocou viver no Brasil nestes anos de moral gelatinosa, aquelas palavras pareceram proféticas.

Tanto na literatura quanto na vida das pessoas, a religiosidade (e no Ocidente, de modo especial, o Cristianismo) exercia no tempo de Machado grande influência sobre a cultura e os valores morais. Assim, para atrair fiéis a sua paróquia, o Diabo do conto machadiano não cuidou de arrancar a fé do coração dos indivíduos.

E a razão dele é conhecida mesmo. Muito mais fácil do que retirar do coração das pessoas a ideia de Deus e de uma ordem moral, é transmitir a elas um – digamos assim, por falta de algo melhor – “princípio regrador”, facilmente aceito pelas mentes da pós-modernidade: o Estado deve ser laico e a religião tema de foro íntimo, para ser exercitado nos recessos dos lares e dos templos. No conto de Machado, a Igreja do Diabo acaba perdendo seu público. No Brasil, por enquanto, ela vai como o Diabo gosta.

Por Percival Puggina.
Publicado no website do autor em 12 de dezembro de 2013.


Faça download do apólogo: “A igreja do diabo“, de Machado de Assis. Clique aqui.


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