O brasileiro Rui Barbosa

Obra: "Rui Barbosa" (1927) por Adrien Henri Vital van Emelen (1868 - 1943).

Não há nada mais relevante para a vida social que a formação do sentimento da justiça.
Rui Barbosa (1849 – 1923)



Certa feita, um obscuro comentarista de jornal escreveu que a biografia era um gênero literário de geografia definida, limitado ao norte pela história, ao sul pela ficção, ao leste pelo obituário e a oeste pelo tédio. Desde logo a frase, bem construída, pega pelo balizamento estrutural do gênero, mas peca pelo princípio da generalização: nem sempre a biografia, enquanto gênero literário, aborrece, em particular quando é traçada por um escritor de estilo claro e íntegro, que compreenda o tempo, o sentido da vida e a obra do seu personagem.

(A propósito — cumpre lembrar — ficou célebre nos anais da história literária o caso da biografia do lexicólogo inglês Samuel Johnson: o seu biógrafo e confidente, James Boswell, tornou-se mais festejado do que o próprio biografado — autor, por sinal, da frase lapidar: “O nacionalismo é o último refúgio dos canalhas”).

Este é justamente o caso do escritor Murilo Melo Filho, em seu livro “O brasileiro Rui Barbosa” (União Editora, João Pessoa, 2010), lançamento não apenas oportuno e essencial, mas de leitura cativante.

Oportuno, em primeiro lugar, porque ao ser lançado em momento tão singularmente acanalhado da vida pública brasileira, recoloca na ordem do dia a pouco lembrada figura de Rui Barbosa, um dos nossos raros homens públicos que soube manter ao longo da vida (de 73 anos) a necessária decência; essencial, porque em exatas 255 páginas a obra nos concede, em substância, os elementos indispensáveis para se avaliar com objetividade a presença marcante de Rui Barbosa no cenário nacional — cenário em que se fez legenda não só como jornalista, político e jurista, mas como escritor, filólogo, educador, diplomata (sem jamais ter passado pelo Itamaraty) e orador; e cativante, por sua vez, porque o autor conduz o leitor — em meio ao levantamento de uma vida plena de peripécias e dramaticidade — ao deleite de pura fruição estética, algo só perceptível na genuína obra literária.

Na sua bem-sucedida empreitada, Murilo Melo Filho soube realçar os muitos atributos que definiram (e definem, ainda hoje) o brasileiro Rui Barbosa, especialmente no que ele tinha (vá lá o chavão) de inteligente, culto, corajoso, fluente e tenaz. No capítulo tenacidade, como realçam alguns biógrafos, Rui Barbosa tinha por hábito trabalhar até 15 horas por dia, uma coisa espantosa, sobretudo para quem, como ele, convivia com frequentes problemas de saúde, não passava de 1,58m de altura, pesando em média 49 quilos.

De ordinário, para se reconstituir a vida de personagem de grande estatura histórica se faz necessário algo mais do que a simples tarefa de coligir fatos, intercalados de datas — uma constante no trabalho de certos biógrafos, nacionais ou estrangeiros, em geral incapazes de refletir sobre o passado.

Neste terreno intrincado, como é sabido, antes de cumprir as tarefas básicas do ofício (ler cartas, livros, estudar documentos, consultar arquivos, entrevistar pessoas, etc.), há que se admirar, nos seus prós e contras, para o bem ou para o mal, a figura do personagem a ser retratado.

Nesta perspectiva, ao considerar Rui Barbosa o protagonista principal da nossa história dita culta e civilizada, no Império e na República, Murilo Melo Filho vai fundo na sua admiração, assumindo a postura de biógrafo consciente e criterioso.

De início, o livro de MMF se impõe como trabalho abrangente. O autor, sem fugir à complexidade do desafio, se empenha em revelar as múltiplas facetas do brasileiro Rui Barbosa, tais como, por exemplo, as do abolicionista, salientando sua extraordinária capacidade de luta para nos livrar, sem o rancor ideológico das cotas raciais em voga, da chaga da escravidão tardia. Neste embate, travado por Rui no parlamento e nas redações de jornais, seu empenho foi tanto que o próprio Machado de Assis diagnosticou: “Ninguém o excedeu, em brilho e em denodo, na libertação dos escravos”.

Obra "Dom Pedro II" (1875), do pintor brasileiro Delfim da Câmara (1834 - 1916). Cantos esfumaçados.Não menos importante, por outro lado, foi a sua participação na construção da República (hoje muito exaltada, mas cada vez mais vilipendiada). De fato, embora respeitado por D. Pedro II, um monarca moderador, Rui era um federalista convicto e logo aderiu à conspiração, transformando-se no arauto da ideia republicana.

Quando o Império é derrubado e a República é proclamada sob os olhares do povo “perplexo e bestificado”, em 15 de novembro de 1889, Rui redige o Decreto provisório que estabeleceu a República Federativa Brasileira, separando a Igreja do Estado — quem sabe, uma das prováveis causas do vácuo moral que se abate sobre o País.

Posteriormente, sozinho, redigiu a Constituição de 1891, fortemente inspirada na Constituição dos Estados Unidos, descentralizadora dos poderes, dando larga autonomia, hoje sonegada, aos municípios e às províncias, transformadas em “estados”. Feito Vice-Chefe do Governo Provisório de Deodoro da Fonseca, Rui Barbosa lançou um manifesto cujo lema era o seguinte: “Com a lei, pela lei e dentro da lei, por que fora da lei não há salvação. Ouso dizer que este é o programa da República”.

Estudiosos desta fase da vida nacional acreditam que Rui, nomeado ministro da Fazenda, abriu séria fenda na sua biografia. De fato, ao impor, na “macroeconomia” cabocla, a conversibilidade do padrão-ouro, o baiano, tal como o venturoso JK, passou a emitir papel moeda aos borbotões, dando margem à política do “encilhamento”, propulsora do jogo especulativo da bolsa, que fez fortunas da noite para o dia e levou o país à inflação galopante, à “carestia” e à quebradeira geral. Como resultado, veio a crise política e a previsível renúncia do ministério.

Rui só ergueu a cabeça (que lhe era desproporcional ao tamanho do corpo) seis anos depois, em 1907, por ocasião da Conferência de Paz, em Haia, onde representou o Brasil na qualidade de Embaixador Plenipotenciário.

Na Conferência — considerada a maior assembleia diplomática internacional até então realizada, com a participação de 44 países do chamado mundo civilizado — a atuação de Rui colocou o Brasil (então, uma floresta gigantesca com 25 milhões de habitantes) nas páginas da história universal.

De início, causou surpresa ver aquela figura mirrada, quase anã, analisar projetos e apresentar emendas e substitutivos no mais irrepreensível francês. Criou ressentimentos, é claro. Numa dessas reuniões, Rui invocou-se ao sentir que um seu discurso, considerado político pelo presidente da Mesa (o embaixador russo De Martens), não seria transcrito nos Anais.

Foi o suficiente para que o orador, até então visto com descaso, subisse à tribuna e, de improviso, fizesse o mais lúcido discurso por acaso já proferido numa conferência internacional sobre as distinções entre a baixa e a alta política, sendo esta, no seu entender, a atmosfera em que podem respirar os povos civilizados — razão pela qual, afirmava, não poderia ser ela excluída de uma assembleia de homens livres. E num arremate marcante, concluiu que a alta política tornava inatacável o princípio da justiça, sem o qual não poderia prevalecer a soberania do direito e a almejada igualdade jurídica entre os povos. O mundo, ali representado, desabou.

Mas o seu grande tento não ficou restrito à palavra. No final da Conferência, no momento da criação da Corte Permanente de Justiça composta por cinco integrantes — Rússia, França, Inglaterra, Áustria e Estados Unidos —, denunciou a manobra, repudiando a formação do quinquovirato. Com o gesto, obrigou as grandes potências incluírem na Comissão Permanente de Justiça de Haia (que julgou, recentemente, o sérvio Slobodan Milosevic), não apenas a representação das cinco nações, mas de todas as nações presentes. Como registrou o delegado belga Lapradelle, “Aquela figura frágil agigantou-se em tamanho e grandeza. Através do Dr. Barbosa, o Brasil alçava-se a uma posição culminante. Ele poderia aliar-se aos maiores, mas preferiu teimar em defesa dos pequenos”.

Rui BarbosaDurante quase meio século a Águia de Haia impôs-se como fenômeno político único e duradouro: deputado provincial, inúmeras vezes senador da República e duas vezes candidato (derrotado) à presidente da Nação (numa delas, na campanha Civilista, contra o folclórico Marechal Hermes da Fonseca), ele assumiu, com legitimidade, o papel da melhor consciência nacional, sempre se insurgindo, com voz firme e oratória incisiva, contra os políticos boçais e desonestos, as maquinações de governos malandros, as imposturas dos movimentos supostamente democráticos e, sobretudo, a alarmante e contagiosa burrice nacional.

Escritor exigente, autor de clássicos da língua portuguesa (da qual foi intransigente defensor), presidente da Academia Brasileira de Letras a despeito de sua vontade, Rui Barbosa foi o relator responsável pelo mais completo projeto de Reforma de Ensino Primário, Secundário e Superior até hoje encaminhado ao poder público — reforma que partia da observação singular de que “os maus alunos serão maus professores, que, por sua vez, serão péssimos líderes”. Na verdade, como o seu objetivo era “ensinar a pensar, a compreender as instituições e a construir a nacionalidade”, seu projeto, em essência, continua intocado.

De minha parte, penso que a ação múltipla de Rui Barbosa desmonta o velho trololó marxista de que a história se move por meio da luta de classes e não pela vontade de homens (e mulheres) capazes e decididos. Com efeito, Rui Barbosa, que exaltava o papel do indivíduo, aprofundou os alicerces da nação brasileira, debatendo os seus principais problemas e enfrentando com inteireza suas questões morais, políticas e sociais. Dotado de saber, caráter, energia, constância e sensibilidade, o Dr. Barbosa era um ser muito acima dos seus pares.

Quero crer que se os integrantes mais conscientes das novas gerações soubessem, por exemplo, que Rui Barbosa, no final da vida, doente e necessitado, recusou, por questão de consciência, projeto do Senado Federal que lhe assegurava prêmio de 5 mil contos; e que, para não deixar o Brasil cair de quatro, recusou o privilegiado cargo de Juiz Permanente na Corte Internacional de Haia; e que, exilado em Londres, em vez sacar dinheiro dos cofres partidários ou assaltar bancos, resolveu lecionar em terra estranha, colocando numa placa de rua o anúncio “Ensina-se inglês”; e que, mesmo atacando em prólogo a infalibilidade do Papa, acreditava em Deus e não deixava de ir para a cama sem rezar de joelhos; e que, no final da vida, na alvorada da morte, escreveu peça oratória da dimensão de “Oração aos Moços”, um testamento cívico e moral sem precedentes na vida do povos — bem, repito, se os integrantes das novas gerações soubessem disso, na certa arrancariam os próprios olhos, como fez o malsinado Édipo, em Tebas, diante do horror da realidade trágica que o cercava.

Em suma, “O brasileiro Rui Barbosa” é um livro fascinante, que nos livra da praga das interpretações “desconstrutivistas” dos professores universitários. Devemos agradecer, penhorados, ao jornalista e escritor Murilo Melo Filho ter sabido criar e oferecer uma obra tão inesperada quanto valiosa.


Escrito por Ipojuca Pontes.
Publicado originalmente pelo website Mídia Sem Máscara, em 26 de junho de 2010.


Ipojuca Pontes
Ipojuca Pontes nasceu em 1942 no Estado da Paraíba, em Campina Grande.
É autor, jornalista, cineasta e escritor. Conquistou mais de trinta prêmios nacionais e internacionais.
Foi secretário Nacional da Cultura em 1990,
no governo Fernando Collor de Mello, também foi Adido Cultural e Diretor do Centro de Estudos Brasileiros em Buenos Aires entre 1991 e 1992.


Notas da editoria:

Imagem da capa: “Rui Barbosa” (1927), de Adrien Henri Vital van Emelen (1868 – 1943).


Artigos relacionados

5 2 votos
Classificação
Inscrever-se
Notifique-me sobre
guest
0 Comentários
 mais antigos
mais recentes  mais votado
Comentários
Visualizar todos os comentários
0
Adoraríamos receber sua crítica. Por favor, escreva-a!!x