O desmoronamento da família

Obra: "Admist the Florentine Hills", por Giovanni Battista Torriglia (1858 – 1937)

Vale mencionar: este valioso artigo para os dias atuais,
foi originalmente publicado pela Revista Catolicismo em novembro de 1988.
Não deixe de ler o tópico: “A legalização da imoralidade”.



Golpeada do exterior pela escola, pelo Estado e pela televisão e mimada em seu próprio interior por desajustes e desavenças de toda espécie – que chegam até a violência, ao abandono e a morte – a família nuclear moderna, característica de nossa sociedade urbana e industrializada, torna-se incapaz de sobreviver e parece destinada ao desaparecimento.

Pior ainda, é uma família que se autodestrói porque não deseja defender-se contra seus agressores: uma escola laica e usurpadora, um Estado intervencionista e prepotente, uma televisão corruptora, tirânica e imbecilizante, conforme expusemos em artigos anteriores [1].

Tal família nuclear, já de si tão reduzida e isolada, vai desaparecendo e cedendo lugar a “famílias” onde já não existe mais o casal estável, unido pelos laços do matrimônio monogâmico e indissolúvel. Essas “famílias” vão obtendo uma aceitação cada vez maior, adquirindo foros de cidadania, não só perante as leis do Estado, como diante da opinião pública em geral.

Entre as manifestações de caráter social desse processo de destruição da família moderna estão as seguintes: diminuição acentuada do número de nascimentos e de casamentos; aumento do número de divórcios e de separações em geral; grande aumento do número de uniões livres e, em consequência, de filhos ilegítimos; aumento acentuado, também, do número de famílias monoparentais (em que só o pai, ou a mãe, vive com os filhos) e de mulheres que trabalham fora do lar. E, pior que tudo, o aumento alarmante da prática homicida do aborto.

O desmoronamento da família é um aspecto, e dos mais contundentes, daquela crise universal, una, total, dominante e processiva, por que passa o homem ocidental e cristão, isto é, o europeu e seus descendentes [2].

Uma nova mentalidade

Tais manifestações da desagregação familiar se acentuaram especialmente nos últimos 20-25 anos. Os estudiosos dos fenômenos sociais são concordes em afirmar que essa transformação se deveu principalmente à existência de um fator psicológico que, em boa medida, precedeu e motivou os fenômenos de ordem social. Foi uma profunda mudança de mentalidade, fruto de uma longa preparação, que levou as pessoas a se comportarem de modo diferente, quase repentinamente, e sem uma explicação aparente, e a aceitarem com satisfação ou com passividade um conjunto de ideias, doutrinas e leis em apoio ao seu novo modo de proceder.

Essa nova mentalidade, especialmente nas gerações mais jovens, se caracteriza por dois aspectos principais: desprezo pela instituição do casamento e pouco desejo de ter filhos. Em outras palavras, fazer do relacionamento sexual uma fonte exclusiva de prazer pessoal, relegando sua finalidade procriativa, quando muito a um plano inteiramente secundário.

Capa da Obra “Revolução e Contra Revolução”, escrita por Plínio Corrêa de Oliveira (1908 – 1995). Publicada pela Livraria Petrus, sob ISBN 978-8572061988.Quando às gerações dos pais, também foram atingidas por essa transformação de mentalidade, embora suas manifestações não sejam inteiramente idênticas ás observadas nas gerações mais jovens. De fato, mesmo sem assumir, na maioria das vezes, o mesmo comportamento dos filhos, os pais encaram com naturalidade e “compreensão” a conduta dos jovens. Não os educam, não os criticam, não os repreendem, e mesmo quando estão em certo desacordo com eles, acabam por ceder, para evitar um rompimento que querem a todo custo impedir. E quando filhos e filhas deixam o lar para viver em união livre, em coabitação sem casamento com outros jovens, mesmo sem condições financeiras para isso, são os pais que os ajudam nessa situação e os acolhem novamente quando resolvem voltar, sem arrependimento algum, mas talvez já satisfeitos ou decepcionados com a “experiência”. São pais que não têm mais argumentos nem força moral para resistir às investidas dos filhos, porque eles próprios já não vivem de acordo com princípios; vivem somente de hábitos mentais adquiridos no passado, para os quais muitas vezes procuram explicação e dos quais frequentemente desejam libertar-se.

Esse desejo de libertação em relação aos hábitos tradicionais, em matéria de costumes, encontra um estímulo inestimável numa sociedade “compreensiva”, que já aceita com complacência o adultério, o concubinato, os sucessivos “casamentos” e, muito especialmente a progressiva liberação nos trajes e na conduta geral. De tal modo que o nudismo nas praias, o seminudismo nas ruas e nos mais diversos ambientes, e a mais completa difundida liberdade sexual, tudo seja acolhido com naturalidade, como se fosse progresso e evolução social.

Essa transformação de mentalidade e de comportamento; a divulgação de novas ideais sobre moral, sexualidade, casamento e família; e a mudança subsequente das leis para se adaptarem aos novos costumes e para lhes dar apoio, tudo isso constitui o resultado de uma ação revolucionária bem planejada e executada. Configura-se assim de modo claro, no campo dos costumes, uma revolução nas tendências, uma revolução nas ideias e uma revolução nas instituições [3].

A legalização da imoralidade

Realmente, observando a atitude dos governos dos diversos países onde tal mudança de comportamento se verificou – ou seja, em praticamente todo o Ocidente ex-cristão – constatamos que a legislação dessas nações, longe de procurar combater o mencionado avanço da imoralidade pública e privada, foi sendo adaptada a novas práticas.

Então, a pretexto de que as leis não poderiam ser anacrônicas em relação aos hábitos e costumes da população, não poderiam ser leis existentes apenas no papel sem serem obedecidas, as autoridades civis dos diversos países foram introduzindo modificações na legislação, de modo a adaptá-la aos novos hábitos e costumes, contrários aos Mandamentos da Lei de Deus.

Se os casais já não são fiéis à indissolubilidade do vínculo, o divórcio é facilitado ao extremo pela lei.

Se as uniões livres vão se tornando cada vez mais frequentes, o concubinato passa a ter iguais direitos aos do casamento frente à Previdência Social.

Se os filhos ilegítimos vão ficando tão numerosos quanto os legítimos, o Estado concede iguais direitos a ambos.

Se os pais abdicam de seu direito e de seu dever de formar e educar os filhos, o Estado lhes tira o pátrio poder e o transfere a instituições sob sua orientação.

Se as mulheres se dizem oprimidas no lar pela autoridade dos maridos, o Estado lhes concede iguais direitos na direção da família, que passa a ser menos hierárquica e mais igualitária. Se elas vão trabalhar fora do lar, o Estado procura facilitar-lhes esta nova situação, impondo aos empregadores sua equiparação salarial, além de licenças especiais para maternidade, creches etc.; ou seja, contribuindo para sua ausência no lar.

Se o uso de métodos contraceptivos de qualquer espécie se vai generalizando entre mulheres e homens, o Estado não só permite sua fabricação e propaganda, como ainda promove a difusão desses métodos por meio de seus serviços de saúde.

Se o número de abortos clandestinos se torna alarmante, o Estado despenaliza essa prática homicida e passa a oferecer às mulheres que desejam matar os próprios filhos em suas entranhas, a realização de abortos gratuitos e com toda a “segurança”, em hospitais e postos de saúde, além de reembolsar os que são realizados em clínicas particulares.

Se o nudismo e o seminudismo estão se difundindo cada vez mais, o Estado permite a prática do nudismo total em número crescente de locais e vai adotando e permitindo as modas seminudistas nos ambientes profissionais e nos logradouros públicos.

Importa realçar ainda que todas essas alterações legais são feitas explicitamente no sentido de promover a liberdade e a igualdade, em detrimento da autoridade e da hierarquia.

Como exemplo significativo dessa atitude do Estado em face da revolução nos costumes, é oportuno lembrar a posição assumida pelo Estado, na França, muito bem descrita pelo Conselho Econômico e Social daquele país. Com as devidas adaptações a descrição também é válida para mostrar a atitude de governos de outras nações diante do fato consumado da revolução nos costumes:

“Na França, a revolução, e depois o Código Civil, deram uma existência jurídica precisa, fora de qualquer sacramento religioso ao casamento. Este se tornou o fundamento institucional e moral da família e da sociedade civil. Entretanto, a partir de 1965, mais ou menos, os costumes mudaram apesar das leis. Os juristas e o legislador julgaram então que as leis que ignorassem os costumes se condenariam a perder seu sentido e a tornar-se anacrônicas. Assim, em poucos anos, eles reformaram profundamente o direito civil referente ao casamento e à família (como ocorreu em outros países ocidentais): Lei sobre os regimes matrimoniais (13-Julho-1965); Lei sobre a adoção (11-Julho-1966); Leia sobre a autoridade paterna (4-Julho 1970); Lei sobre a filiação (3-Janeiro-1972); Lei sobe o divorcia (10-Julho-1975). (…)

“Todas essas mudanças seguiram uma mesma evolução, ou seja, elas levaram ao abandono de certos princípios e à consagração de outros:

— foram abandonados ou debilitados os princípios do respeito à hierarquia patriarcal, à instituição, à força da legitimidade em matéria de filiação e sucessão. (…)

— foram promovidos os princípios da liberdade pessoal; do respeito ao interesse particular de cada um dos membros do casal enquanto indivíduo; da igualdade entre os membros do casal durante o casamento (…); da equidade entre filhos naturais, adotivos e legítimos. (…)

“Porém (…) este ‘aggiornamento’ liberal que deseja alcançar os costumes, foi ignorado e ultrapassado por eles. Este casamento igualitário (…) foi desprezado por uma fração importante das gerações jovens, que preferiu optar em massa pela união livre (…) O Divórcio facilitado não conseguiu persuadi-los a contrair laços legais” [4].

É interessante notar como o próprio Estado francês confessa ser o dinamismo da revolução nos costumes maior e mais rápido do que o da revolução nas leis e nas instituições. O que vem a confirmar uma vez mais, ser a revolução tendencial o grande motor da Revolução universal, tal como foi constatado e denunciado, pela primeira vez na História, na consagrada obra do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, “Revolução e Contra-Revolução”, já mencionada anteriormente neste artigo:

“Essa revolução é um processo feito de etapas, e tem sua origem última em determinadas tendência desordenadas que lhe servem e alma e de força propulsora mais íntima. (…)

“A mais possante força propulsora da Revolução está nas tendências desordenadas. (…) Essas tendência desordenadas se desenvolvem como os pruridos e os vícios isto é, à medida mesmo que se satisfazem, crescem em intensidade. As tendências produzem crises morais, doutrinas errôneas, e depois revoluções. Uma e outros, por sua vez, exacerbam as tendências. Estas últimas levam em seguida, e por um movimento análogo, a novas crises, novos erros, novas revoluções. É o que explica que nos encontremos hoje em tal praxismo da impiedade e da imoralidade, bem como em tal abismo de desordens e discórdias” [5].


Escrito por Murillo Galliez.
Publicado originalmente pela Revista Catolicismo em novembro de 1988.


Notas:

  1. Cfr. Murillo Galliez, “A crise familiar na sociedade urbana e industrial”, Catolicismo”, outubro/1986, nº 430; “Escola e Estado aliados na demolição do pátrio poder”, “Catolicismo”, maio/1987, nº 437;“Pais capitulam sem luta ante a ação desagregadora da TV”, “Catolicismo”, agosto/1988, nº 452.
  2. Cfr. Plinio Corrêa de Oliveira, “Revolução e Contra-Revolução”, Diário das Leis Ltda., São Paulo, 2º edição, 1982, pp. 17-18.
  3. Cfr. Idem, op. cit., p. 23.
  4. Conseil Économique et Social, “Le Statut Matrimonial et ses conséquences juridiques, fiscales et sociales”, “Journal Officiel de la République Fraçaise”, Paris 31/janeiro/1984. P. 6.
  5. Plinio Corrêa de Oliveira, op. Cit., pp. 23-24.

Nota do editor:

A imagem associada a esta postagem ilustra recorte da obra: “Admist the Florentine Hills”, pelo pintor italiano Giovanni Battista Torriglia (1858 – 1937).


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