Excertos do livro: “Tremendas trivialidades”, escrito por G. K. Chesterton (1874 – 1936).
Publicado pela Editora Ecclesiae, sob ISBN 9788563160218.
Era uma vez dois meninos que viviam principalmente no jardim da frente, pois sua vila era de tipo projetado. O jardim da frente tinha aproximadamente o mesmo tamanho da mesa de jantar; consistia em quatro faixas de cascalho, um quadrado de grama com alguns misteriosos pedaços de cortiça no centro e um canteiro de flores com uma fileira de margaridas vermelhas. Uma manhã em que brincavam nesse romântico local, um transeunte, provavelmente o leiteiro, debruçou-se sobre a cerca e entabulou uma conversa filosófica com eles. Os meninos, que chamaremos Paulo e Pedro, estavam, pelo menos, vivamente interessados no que dizia. Pois o leiteiro (que era, devo dizer, uma fada) cumpriu seus deveres de estado oferecendo-lhes como de praxe qualquer coisa que quisessem pedir. E Paulo aceitou a oferta com uma brusquidão pragmática, explicando que sempre quisera ser um gigante que pudesse caminhar entre os continentes e oceanos e visitar o Niágara ou o Himalaia em um passeio de fim de tarde. O leiteiro, tendo retirado do bolso de seu colete uma varinha, agitou-a de maneira apressada e negligente, e num instante a vila modelo com seu jardim em frente era como uma pequena casa de bonecas diante dos colossais pés de Paulo. Ele saiu caminhando com sua cabeça acima das nuvens para visitar o Niágara e o Himalaia. Mas, quando chegou ao Himalaia, descobriu que era bastante pequeno e sem graça, como o pequeno monte de cortiça no jardim; e, quando chegou ao Niágara, viu que não era maior que a torneira aberta no banheiro. Ele caminhou ao redor do mundo por vários minutos tentando encontrar algo realmente grande e achando tudo pequeno, até que, de puro aborrecimento, deitou-se sobre cinco ou seis pradarias e adormeceu. Infelizmente sua cabeça estava logo ao lado da cabana de um caipira intelectual que saiu naquele momento com um machado em uma mão e um livro de filosofia neocatólica na outra. O homem olhou para o livro e em seguida para o gigante, e a seguir para o livro novamente. E o livro dizia: “Pode-se afirmar que o mal do orgulho consiste em estar fora de proporção com o universo”. Então o caipira pôs de lado o livro, pegou seu machado e, trabalhando oito horas por dia por aproximadamente uma semana, cortou a cabeça do gigante, e esse foi o seu fim.
Essa é a dura, porém salutar história de Paulo. Mas Pedro, curiosamente, fez o pedido exatamente inverso: disse que sempre quisera ser um pigmeu de cerca de meia polegada; e é claro que imediatamente se tornou um. Quando a transformação acabou ele se encontrou no meio de uma imensa planície coberta com uma alta floresta verde e acima da qual a intervalos estranhos se elevavam árvores, cada uma com uma copa semelhante ao sol em pinturas simbólicas, com gigantescos raios prateados e um enorme centro de ouro. No meio dessa pradaria erguia-se uma montanha de forma tão romântica e impossível, e mesmo assim de uma predominância e altura tão sólidas, que parecia algum incidente do fim do mundo. E ao longe no horizonte via-se o limite de outra floresta, mais alta e ainda mais misteriosa, de uma terrível cor carmim, como uma floresta eternamente em chamas. Pedro partiu em suas aventuras através daquela planície colorida e até agora não chegou ao fim.
Assim é a história de Pedro e Paulo, que contém todas as mais altas qualidades de um conto de fadas moderno, inclusive a de ser totalmente imprópria para crianças; e, de fato, o motivo pelo qual a apresentei não é infantil, mas cheio de sutileza e segundas intenções. É na verdade o motivo quase desesperado de desculpar ou mitigar as páginas que se seguem. Pedro e Paulo são as duas influências principais na literatura europeia de hoje, e deve-se permitir que eu apresente minhas próprias preferências no formato mais favorável, mesmo que só o consiga fazer através do que garotinhas chamam contar uma história.
Quase não há necessidade de dizer que eu sou o pigmeu. A única desculpa para os fragmentos de texto a seguir é que mostram o que pode ser alcançado com uma existência comum e os óculos sagrados do exagero. A outra grande teoria literária, que é basicamente representada na Inglaterra por Mr. Rudy ard Kipling, é que nós os modernos voltaremos a alcançar a alegria primitiva espalhando-nos por todo o mundo, acostumando-nos com as viagens e a variedade geográfica, estando em casa em todos os lugares, que é o mesmo que não estar em casa em lugar algum. Admita-se que um homem em uma sobrecasaca é uma visão de partir o coração: os dois sistemas alternativos permanecem. A escola de Mr. Kipling nos aconselha a ir para a África Central para encontrar um homem sem casaca. A escola a que pertenço sugere que olhemos persistentemente para ele até enxergarmos o homem dentro da casaca. Se o encararmos por tempo suficiente, pode até sentir-se levado a tirar sua casaca para nós, e esse seria um cumprimento bem maior do que se tirasse seu chapéu. Em outras palavras, podemos, ao fixar nossa atenção quase ferozmente nos fatos que realmente estão à nossa frente, forçá-los a tornarem-se aventuras, forçá-los a desistir de seu significado e cumprir seu misterioso propósito. O propósito da literatura de Kipling é mostrar quantas coisas extraordinárias um homem pode ver se é ativo e passeia de continente em continente como o gigante em minha história. Mas o objetivo da minha escola é mostrar quantas coisas extraordinárias até mesmo um homem preguiçoso e ordinário pode ver se se dispuser à simples atividade de ver. Com esse propósito, tomei a pessoa mais preguiçosa que conheço, isto é, eu mesmo, e fiz um inútil diário de coisas estranhas com as quais trombei por acidente, ao andar em uma área muito limitada, a um passo muito indolente. Se alguém disser que esses são temas muito pequenos comentados em linguagem muito grandiosa, só poderei cumprimentá-lo graciosamente por ter percebido a piada. Se alguém disser que estou transformando tocas de toupeiras em montanhas, confessarei com orgulho que é isso mesmo. Não consigo imaginar uma atividade manual mais bem sucedida e produtiva do que transformar tocas de toupeiras em montanhas.
Mas acrescentaria este fato não desprezível de que tocas de toupeiras são montanhas; só é preciso tornar-se um pigmeu como Pedro para descobri-lo.
Tenho minhas dúvidas sobre o valor real do montanhismo, de chegar ao topo de tudo e contemplar tudo do alto. Satanás foi o maior dos guias montanheses, quando levou Jesus para o alto de uma montanha extremamente alta e lhe mostrou todos os reinos do mundo. Mas a alegria de Satanás em subir a um pico não é a alegria pela grandeza, mas a alegria de contemplar a pequenez, pelo fato de que todos os homens parecem insetos a seus pés. É desde o vale que as coisas parecem grandes; é da planície que as coisas parecem altas. Eu sou um filho da planície e não tenho necessidade daquele grande guia montanhês. Erguerei meu olhar para as montanhas, de onde virá o meu auxílio; mas não erguerei minha carcaça às montanhas, a menos que seja absolutamente necessário. Tudo é uma posição da mente, e neste momento estou em uma posição confortável. Vou sentar-me e deixar que as maravilhas e aventuras pousem em mim como moscas. Há muitas delas, garanto. O mundo nunca sofrerá com a falta de maravilhas, mas apenas com a falta da capacidade de se maravilhar.
Extraído da obra: “Tremendas trivialidades”.
Autor: G. K. Chesterton (1874 – 1936). Tradutor: Mateus Leme.
Publicado pela Editora Ecclesiae, sob ISBN: 9788563160218.
Nota do editor:
A imagem associada a esta postagem ilustra recorte da obra: “The Artist’s Family in the Garden”, pelo pintor francês Oscar-Claude Monet (1840 – 1926).
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